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A Ciência, Poder e Responsabilidade: por uma agenda ética de desobediência epistêmica

Por:   •  28/11/2018  •  3.004 Palavras (13 Páginas)  •  361 Visualizações

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e Res Extensa. Mundo cindido onde as palavras (representações) se tornam dominantes das coisas (materialidades) .

É com essa matriz paradigmática que o cogitare (o pensar) se torna um poder de representação e, portanto, de dominação. É proclamada a autonomia (relativa, é verdade) diante dos Deuses, dos Mitos, da Natureza. Como sujeitos pensantes era possível assumirmos o posto de senhores e mestres da natureza (mera coisa extensa ao sujeito). Tornamo-nos capazes de fazer equações para desvendar a matéria. Descobrir e manipular células, moléculas, átomos. Construir portos e navios. Edificar prédios gigantescos. Viajar pelos céus e profundezas oceânicas. Criar máquinas para gerar e destruir vidas. Somos, enfim, criadores de sonhos e pesadelos da razão científica.

Não podemos deixar de esquecer que as chamadas conquistas científicas foram apropriadas e usadas para conquistas de povos e territórios. Basta lembrar que a construção do sistema moderno-colonial contou largamente com a ciência e pela técnica. Afinal, se a missão ibérica de conquista da América estava consagrada por um Deus Romano Católico, esta ganhou apoio na instrumentalização da melhor ciência matemática, cartográfica e náutica daquele período (Porto-Gonçalves, 2017), e acrescentaríamos as máquinas de guerra que provocaram tempestades de fogo destinadas à submissão de humanidades tratadas com selvagens res extensas.

Para crítica deste movimento unidirecional de sentido da humanidade, Aníbal Quijano (2000) aborda a imposição de parâmetros de percurso das sociedades a partir de valores, juízos e relações que passam a operar como um patamar de práticas sociais comuns para todo o mundo. Ou seja, uma esfera intersubjetiva que existe e atua como central na orientação valorativa de uma civilização: por isso as instituições hegemônicas de cada âmbito de existência social se tornaram universais para a população do mundo como modelos intersubjetivos (QUIJANO, p.223).

Na perspectiva anunciada, a expropriação e exploração objetiva de territórios e populações constitutiva da extensão geográfica moderna-colonial se fez acompanhar da imposição de histórias, culturas e instituições, implicando a subalternização radical de outras histórias, culturas e instituições consideradas como inferiores ou atrasadas. Trata-se, portanto, de uma construção hegemônica definida por Quijano (2000) como colonialidade do poder, uma vez que se impõe como imaginária instituinte/legitimadora de relações sociais desiguais a presidir o mundo, cuja referência matricial era uma historicidade local (europeia ocidental) que passou a invisibilizar diferenças de sentidos e modos de vida .

Se Quijano elabora o conceito de colonialidade de poder como síntese explicativa da construção do sistema mundo capitalista, será Edgardo Lander (2006) que investirá no debate da colonialidade do saber. Para ele, a produção do conhecimento estabelecida na relação sujeito – objeto é a mesma que impõe a relações do proprietário privado com as mercadorias (produtos do trabalho) e da própria força de trabalho. Assim, mais do que uma episteme pretensamente neutra e racional, há uma relação de poder instituinte de relações sociais de subordinação e inferiorização que operam as distinções hierárquicas de classe, de raça, de gênero e de sexualidade por meio das quais o capitalismo se alimenta e se reproduz como sistema hegemônico de produção material e simbólica.

Pode-se afirmar, ao seguir a linha de argumentação descrita, que um regime de conhecimento é também um regime de classificação de seres humanos como ordenamento a sociedade . Como afirma Shiva (2003), os sistemas moderno-ocidentais investidos de posições uni-versais de conhecimento são, eles próprios, colonizadores de saberes, relações e práticas de outras sociedades.

Retraduzindo o Cogitare como responsabilidade

O cogito traduzido como pensar racional tem origem na expressão latina cogitare. Entretanto, é também onde se origina o verbo cuidar. Hanna Arendt (2000) afirmava que a cultura era uma construção de cuidados que seria reveladora de nossa condição humana. Os Ancestrais, a Terra e a Vida Humana seriam as existências a serem cuidadas e assim, e só assim, nos afirmaríamos como sujeitos plenos da cultura. Cuidar para fazer existir, para proteger e para pertencer àquilo que nos pertence. Portanto, o cogitare poderia ser também interpretado como um ato de ser responsável com os diferentes de nós mesmos e nos tornarmos dignos de nossa autoapresentação como seres da cultura.

Adentramos, agora, em outro termo da composição do nosso debate: a responsabilidade.

Então, vale a indagação um tanto quanto ingênua: o que é ser responsável? Ou melhor, e mais específico em relação à proposta de nosso debate, como conjugar Responsabilidade aos termos Ciência e Poder?

A resposta mais apropriada convida o ingresso da Ética em nossa prosa. Então, o sentido de ser responsável com outro diferente de nós mesmos, diz respeito ao cuidado das existências. Aristóteles ensinou, há muitos séculos atrás, que não haveria outro proposito para nossa existência que não fosse a busca da Justiça e da Felicidade. B. Spinoza (1622 – 1677) ampliaria e reconduziria a proposição aristotélica com a Liberdade e a Alegria, consideradas como potências da vida individual e coletiva. Podemos dizer, correndo o risco do abuso das simplificações, que a Ética nos convida a construir um estilo de existência como cuidado de si com outros, traduzindo-se como uma política de reconhecimento e emancipação das potências de ser-no-mundo. Para os ardorosos de exemplos práticos, estamos falando da convivência com diferentes de nós mesmos, assumindo uma radical intolerância diante das desigualdades; do aprender criativamente a lidar com conflitos inerentes as nossas práticas sociais diferenciadas e nossas escolhas de vida; e, sobretudo, afirma os direitos plenos das multiplicidades socioculturais que nos fazem humanos.

Ao considerar a responsabilidade como cuidado de existências (no discurso e na ação) nos exige adentrar na questão da diferença com primado das relações societárias. Não somos uni-versais! Mas sim, perdoem o neologismo, pluri-versais. Afirma-se aqui a concepção de um nós outros como ethos do mundo constituído e constituinte de diferenças. Ou seja, uma morada corporificada por sujeitos múltiplos que é, simultaneamente, significado e condição de toda existência. E, tomada como expressão política do reconhecimento e da emancipação, estamos diante da configuração do que podemos denominar de polis: uma comunidade

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