RESENHA DA OBRA - ATOS IMPUROS: A VIDA DE UMA FREIRA LÉSBICA NA ITALIA DA RENASCENÇA
Por: Sara • 11/12/2018 • 1.584 Palavras (7 Páginas) • 659 Visualizações
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A visão depreciativa acerca das mulheres, renegadas em basicamente todos os âmbitos, encontra justificativas entre os próprios comentadores contemporâneos, pois como afirma Delemeau, os teólogos e médicos apoiavam-se uns nos outros e forneciam justificativas para os juristas, a outra grande autoridade da época, para as desvalorizarem. Sintetizando,
Era a um só tempo inferior (uma vez que fora criada da costela de Adão) e diabólica (uma vez que havia sucumbido à serpente, fazendo com que Adão fosse expulso do Paraíso, além de ter descoberto o deleite carnal e o ter mostrado a Adão). Esta visão da inferioridade da mulher era uniformemente divulgada nos tratados teológicos, médicos e científicos, e ninguém a questionava. Por causa de seu caráter maligno intrínseco, a mulher precisava de ser disciplinada. (RICHARDS, 1993, p. 38)
Dessa forma, o principal fator que levantou a suspeita acerca da freira não fora a sua sexualidade, até mesmo porque esta aparece tardiamente nos escritos, mas como sugere Brown, essa fora causada pelas ―extraordinárias proclamações místicas que fizera e pelo número de adeptos que começara a adquirir entre o povo, [por isso] Benedetta deve ter apresentado uma ameaça à autoridade da Igreja‖ (BROWN, 1987, p.13). Assim, começa então um processo de investigação contra Benedetta Carlini, organizado da seguinte forma: duas investigações, sendo a primeira mais demorada e realizada em catorze visitas, e a segunda, com apenas duas, porém mais precisas e agudas.
Ao que se refere à primeira investigação, que possui capítulo próprio (bem como a segunda), desenvolveu-se durante dois meses de exaustivas questões e minuciosos exames dos estigmas. Ela baseou-se nos feitos de caráter místico atribuídos à freira, já que ―a Igreja sempre considerou a revelação e o misticismo pessoal problemáticos‖ (BROWN, 1987, p.81), além dos ataques feitos de dentro da própria Igreja devido à dissidência protestante, que
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tentou conter as formas de experiência carismática, temendo uma condução dos fieis a erros doutrinários.
Decorrente disso, Benedetta acumulara grande influência e poder, o que a tornou uma ―ameaça‖ à Igreja, visto que suas anunciações poderiam tanto manchar a instituição quanto subjuga-la. Porém, ao fim das catorze sessões, todos os requisitos inquisitoriais foram atendidos, o que levou as autoridades a concluírem a harmonia e legitimidade de suas alegações em relação aos dogmas e práticas da Igreja.
Porém, a ascensão de Benedetta ao cargo de abadessa do convento teatino de Pescia, a acumulação de seguidores e os poderes delegados pelo próprio Cristo (que aparecera em suas visões e até mesmo casou-se com ela), suscitaram uma nova leva de dúvidas. A nova visão da Igreja reformada, que já vira muitos impostores e enganadores e que queria desencorajar tantos outros, foi (como afirma Brown) de que no século XVI ―a Igreja passou a desencorajar ativamente a crença popular em visões e milagres não reconhecidos.‖ (BROWN, 1987, p.156) Assim, uma segunda investigação é organizada, agora não mais com autoridades locais, mas sim com juízes enviados do núncio papal, entre agosto de 1622 e março de 1623.
Imbuídos de um novo ímpeto, os investigadores agora possuíam novas instruções, o que acrescentaria provas adicionais ao caso. Escreveram então, detalhadamente, tudo aquilo que fora dito pelas freiras, indicando a cada acusação exatamente a quantidade de mulheres que haviam presenciado os acontecimentos. Começaram a surgir discrepâncias e evidências causadas pela nova conjuntura do convento, até a mais atenuante, suas relações homoafetivas com a freira Bartolomea Crivelli. Atordoados e impressionados, mas não ignorantes em relação à existência da homossexualidade, o que importava ―não é qual era, em princípio, a atitude do cristianismo em relação à homossexualidade — uma vez que se lhe opunha claramente —, mas como o cristianismo acreditava que devia lidar com os infratores‖ (RICHARDS, 1993, p. 139), visto que as autoridades da Igreja possuíam até mesmo manuais e fontes a exemplo da Summa Theologiae , de santo Tomás de Aquino ( c . 1266), que já comentava sobre o assunto.
Diferente do esperado, o posicionamento dos inquisidores em relação ao ―crime‖ de Benedetta não fora de acusação do atos impuros em si, dada à sua relação lésbica, pois como afirma Brown, ―durante muito tempo os europeus acharam difícil aceitar que as mulheres pudessem realmente ser atraídas por outras mulheres‖ (BROWN, 1987, p.14), e ainda citando Agnolo Firenzoula, em Ragionamenti Amorosi, ―esse tipo de amor não seria melhor porque a
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beleza do homem, por uma vontade superior da natureza, inspira mais desejo na mulher do que a beleza de outra mulher. O mesmo tipo de atração pelo sexo oposto também existe para os homens.‖ (BROWN, 1987, p.20)
Essa dificuldade na aceitação da relação com outra mulher e as alegações da freira de que não estava sob seu controle durante todos os atos suspeitos levaram a um desfecho diferente do habitual. Em vez de fechar o relatório com essas acusações, uma pincelada final foi dada acerca da sua má conduta heterossexual. No contexto da Renascença italiana, o fator decisivo para a condenação de Benedetta a trinta e cinco anos de confinamento fora que ―durante todo um ano ela ia até as grades para conversar e rir o dia todo com um sacerdote que é seu parente distante, o que causava grande escândalo e preocupação entre os leigos e as freiras‖. (BROWN, 1987, p.180)
Portanto, fica claro que o achado de Judith C. Brown não é apenas uma peça fundamental para o entendimento da História da Renascença italiana, mas a forma com
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