Razões Práticas Sobre a Teoria da Acção
Por: Lidieisa • 23/4/2018 • 7.766 Palavras (32 Páginas) • 332 Visualizações
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O real é relacional
[pic 14]E neste espírito que vou apresentar o modelo que construí em La Distinction, tentando antes do mais prevenir contra uma leitura "substancialista" de análises que se querem estruturais ou, melhor, relacionais (refiro-me aqui, sem poder lembrá-la mais demoradamente, à oposição feita por Ernst Cassirer entre "conceitos substanciais" e "conceitos funcionais ou relacionais"). Para me explicar melhor, direi que a leitura "substancialista" e ingenuamente realista considera cada uma das práticas (por exemplo, a prática do golfe) ou dos consumos (por exemplo, a cozinha chinesa) em si mesma e por si mesma, independentemente do universo das práticas substituíveis, e que concebe a correspondência entre as posições sociais (ou as classes pensadas como conjuntos substanciais) e os gostos ou as práticas como uma relação mecânica e directa: nesta lógica, poderíamos ver uma refutação do modelo proposto no facto de, para pegarmos num exemplo decerto bastante fácil, os intelectuais japoneses ou americanos se darem ares de apreciadores da cozinha francesa enquanto os intelectuais franceses gostam de frequentar os restaurantes chineses ou japoneses, ou ainda no facto de os estabelecimentos comerciais elegantes do faubourg Saint-Honoré ostentarem nomes ingleses, tais como hair dresser. Outro exemplo, mais impressionante ainda, ao que julgo: todos sabemos que, no caso do Japão, são as mulheres menos instruídas das comunas rurais que detêm a taxa mais elevada de participação nas consultas eleitorais, ao passo que em França, como mostrei através de uma análise das não-respostas aos questionários de opinião, a taxa de não-respostas — e de indiferença perante a política — é particularmente elevada entre as mulheres, entre os menos instruídos e entre os mais desprovidos em termos sociais e económicos. Temos aqui uma falsa diferença que esconde uma diferença verdadeira: o "apolitismo" ligado ao desapossamento dos instrumentos de produção das opiniões políticas, que se exprime num caso como simples absentismo e no outro como uma espécie de participação apolítica. E devemos perguntar-nos quais são as condições históricas (para o que teríamos que invocar toda a história política do Japão) que fazem com que sejam os partidos conservadores os que, no Japão, conseguiram, através de formas muito particulares de clientelismo, beneficiar da tendência para a delegação incondicional, favorecida pela convicção de se não deter a competência estatutária e técnica indispensável à participação.
O modo de pensamento substancialista, que é o do senso comum — e do racismo — e que leva a tratar as actividades ou as preferências próprias de certos indivíduos ou de certos grupos de uma certa sociedade num certo momento como propriedades substanciais, inscritas de uma vez por todas numa espécie de essência biológica ou — o que não é melhor — cultural, conduz aos mesmos erros na comparação não já entre sociedades diferentes, mas entre períodos sucessivos da mesma sociedade. Alguns quererão ver refutação do modelo proposto — cujo diagrama apresentando a entre o espaço das classes construídas e o espaço das práticas propõe uma figuração imagética e sinóptica[1] — no facto de, por exemplo, o ténis e mesmo o golfe já não se associarem hoje tão exclusivamente como outrora às posições dominantes. Objecção tão séria ou tão pouco como a que consistisse em oporem-me que os desportos nobres, como a equitação ou a esgrima (ou, no Japão, as artes marciais), já não são apanágio dos nobres, como foram nos seus primórdios... Uma prática inicialmente nobre pode ser abandonada pelos nobres — e é o que, as mais das vezes, acontece —, quando é adoptada por uma fracção crescente dos burgueses e dos pequeno-burgueses, ou até das classes populares (foi o caso em França do boxe, praticado com gosto pelos aristocratas de fins do século m); inversamente, uma prática de início popular pode a certo momento ser retomada pelos nobres. Em suma, devemos evitar transformar em propriedades necessárias e intrínsecas de um qualquer grupo (a nobreza, os samurais, bem como os operários ou os empregados dos serviços) as propriedades que lhes incumbem num dado momento do tempo em virtude da posição que ocupam num espaço social determinado, e num estado determinado da oferta dos bens e das práticas possíveis. Somos assim confrontados, a cada momento de cada sociedade, com um conjunto de posições sociais que se une por uma relação de homologia a um conjunto de actividades (a prática do golfe ou do piano) ou de bens (uma residência secundária ou um quadro de um mestre), eles próprios relacionalmente caracterizados.[pic 15]
Esta fórmula, que pode parecer abstracta e obscura, enuncia a primeira condição de uma leitura adequada da análise da relação entre as posições sociais (conceito relacional), as disposições (ou os habitus) e as tomadas de posição, as "escolhas" que os agentes sociais operam nos mais diferentes domínios da prática, cozinha ou desporto, música ou política, etc. Lembra-nos que a comparação só é possível entre sistema e sistema e que a investigação de equivalências directas entre traços isoladamente considerados, quer sejam à primeira vista diferentes, mas "funcionalmente" ou tecnicamente equivalentes (como o Pernod e o shôchu ou o saké), quer nominalmente idênticos (a prática do golfe em França e no Japão, por exemplo), pode levar-nos a identificar em termos indevidos propriedades estruturalmente diferentes ou a distinguir sem razão propriedades estruturalmente idênticas. O próprio título da obra serve para lembrar que aquilo a que correntemente se chama distinção, quer dizer, uma certa qualidade, as mais das vezes considerada inata (fala-se de "distinção natural"), da apresentação e das maneiras, não é na realidade senão diferença, desvio, traço distintivo, em suma, propriedade relacional que só existe na e pela relação com outras propriedades.
Esta ideia de diferença, de desvio, encontra-se no fundamento da própria noção de espaço, conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas por referência às outras, pela sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de afastamento e também por relações de ordem, como acima, abaixo e entre; numerosas propriedades dos membros da pequena-burguesia podem por exemplo ser deduzidas do facto de esses membros ocuparem uma posição intermédia entre as duas posições extremas sem serem objectivamente identificáveis nem subjectivamente se identificarem nem com uma nem com oufra.
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