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A fragmentação do ser humano no mundo contemporâneo

Por:   •  19/10/2018  •  3.608 Palavras (15 Páginas)  •  482 Visualizações

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O contexto moderno da cidade passa a se modificar profundamente e, consequentemente, o homem que nela vive e que se sente perdido nessa situação. O homem passa a trabalhar mais e a viver sem parar nessa situação de crescimento econômico e de mudanças estruturais na cidade. O controle é cada vez maior em cima dos trabalhadores, com uma disciplina, vigilância cada vez maior em cima dos trabalhadores em especial e sobre a sociedade como um todo. Foucault, filósofo e crítico literário do século XX, na sua obra “Vigiar e Punir”, critica esse amplo controle social das instituições através das chamadas sociedades disciplinares, como escolas e fábricas que moldavam o ser humano a sua vontade, “disciplinando-os”, controlando seus comportamentos e fazendo-os trabalhar de maneira automatizada.

Atrelado a esse novo cenário urbano que vai se delineando, surge um novo perfil de sujeito moderno que é o flâneur, termo desenvolvido por Charles Baudelaire, que via o sujeito como alguém que anda pela cidade a fim de observá-la atentamente. Nada escapa ao olhar dele. Entretanto, o objetivo não é sentir tudo, como Álvaro de Campos, que queria sentir tudo, viver tudo. Era um insaciável. O flâneur não. Ele é um viajante, um turista mais envolvido com aquela cidade do que o turista tradicional, um observador do espaço urbano. Ele caminhava, observava e imaginava em um contexto tão dinâmico como é o contexto da cidade. Isso pode ser entendido até como uma crítica de Baudelaire a um período, em que o sujeito não consegue parar para observar nada, algo ainda mais explícito no mundo contemporâneo.

Nesse sentido, chegamos ao Brasil e a presença de uma literatura urbana no começo do século XX, marcada por retratar o espaço urbano que vai surgindo de maneira irregular em um país ainda perdido. João do Rio, um dos grandes cronistas e romancistas do período, surge como grande nome dessa literatura urbana, atuando como flâneur, refletindo e retratando as profundas mudanças da cidade do Rio de Janeiro entre os séculos XIX e XX, principalmente na chamada época da belle époque, em que a cidade passa por transformações, principalmente no período das reformas de Pereira Passos, buscando se adequar ao período e virar uma cidade moderna, adaptada e comparada com Paris, o grande referencial artístico moderno de cidade na época. Essa é a origem da marginalização, em que pobres e ricos caminham em lados opostos. Tudo em prol de uma cidade urbanizada e limpa nesse processo de modernização.

Ainda analisando o conceito de flâneur, cabe analisar aqui o conto “O homem da multidão” de Edgard Allan Poe. O narrador do conto é um observador do espaço urbano e chama-lhe a atenção toda aquela multidão, que formava a cidade de Londres, pulsando com a Revolução Industrial e o desenvolvimento de novos meios tecnológicos. O personagem principal do conto é um Álvaro de Campos, quer viver tudo a seu redor, um flâneur por excelência. Um sujeito que está dando pela rua chama a atenção dele pela feição desesperada do homem e ele começa a segui-lo pelas ruas. Isso não é o bastante para ele conhecer aquele desconhecido, um mero figurante, um mero “cavalo” entre muitos cavalos. Ele é apenas um solitário, sem identidade, sem nome, sem voz, sem nada. Ele faz parte daquela dinâmica urbana, veloz, em que todos são substituíveis. A dinâmica do anonimato.

Em relação a Fernando Pessoa, cabe ressaltar que ele é um poeta que viveu essa transição entre o século XIX e o XX, a chamada poesia finissecular, em que o sujeito está só, perdido em meio a um espaço urbano que se expande cada vez mais, se dinamiza e se desenvolve em um ritmo acelerado, com grandes transformações socioeconômicas e que vão alterar profundamente o ritmo de produção, conforme abordado acima. Pessoa, em contato constante com Sá Carneiro, poetas da chamada Geração Orfeu, trocavam informações a respeito de Paris, a cidade-modelo da época. Eles buscavam enquadrar Portugal nesse contexto moderno, através de uma literatura de vanguarda para modernizar a arte em Portugal e também modernizar o próprio país, descompassado nessa relação entre modernidade e a própria sociedade.

Pessoa, inquieto como era, se fragmentou na tentativa de entender melhor esse mundo moderno, progressista. Esse progresso, criticado por autores como Benjamin que chamava a atenção da falta de percepção, a falta de tempo de narrar, entre outras coisas que ele criticava em relação a essa época de progresso e desenvolvimento constantes, com o ser humano totalmente deslocado e fragmentado, tendo que se virar e sem tempo para nada. Fernando Pessoa se desdobra em vários eus, um fingimento como ele mesmo se refere. “O poeta é um fingidor”. Às vezes, temos que fingir para tentar entender o mundo e nos entendermos. Pessoa se multiplica para fazer exatamente o que Benjamin enxergava como algo que estava se extinguindo: a falta de percepção do sujeito em relação ao mundo em que vive.

Álvaro de Campos é considerado o heterônimo mais intenso de Fernando Pessoa. Ele quer olhar tudo e todos, com seu olhar cosmopolita de homem do mundo. A velocidade, a dinâmica do mundo moderno atrai Álvaro, que se multiplica em si mesmo para viver tudo ao mesmo tempo. A intensidade e a efervescência do meio urbano perturbam e atraem o heterônimo pessoano. A vida vista de maneira efêmera, que tudo passa, é encarado por Campos, que tenta dar conta de tudo. Por fora, Álvaro é intenso e quer viver tudo que a modernidade pode proporcionar. Por dentro, ele é um solitário flâneur de Baudelaire. Em alguns poemas de Álvaro de Campos, a brevidade da vida é retratada, mostrando uma das características mais importantes do contemporâneo, que é a efemeridade das coisas, aquele olhar que se perde, distraído com tudo, fragmentado em tantas coisas e não consegue dar conta de tudo. Tudo passa rápido e nada se vive. Tudo ocorre ao acaso, instantaneamente, de maneira anônima no espaço urbano, como exemplificado no poema “Acaso” do heterônimo de Fernando Pessoa abaixo:

Acaso

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.

Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,

E a outra rapariga passa

[...]

Além disso, Álvaro de Campos exalta a sua fragmentação, ele se perdeu no seu interior,

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