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Autoria e história cultural da ciência

Por:   •  23/10/2018  •  2.264 Palavras (10 Páginas)  •  295 Visualizações

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Chartier critica a vaga cronologia apresentada por Foucault ao analisar a história da autoria e surgimento da “função-autor”, inclusive no tocante aos quiasmos por ele evocados, onde na Idade Moderna os discursos “científicos” passam a ser aceitos por seus próprios méritos de prova e refutabilidade, dispensando a atribuição de autoria. Nos discursos “literários” os quiasmos são verificados no momento em que estes passam a ser aceitos somente se identificado o autor, em flagrante inversão das práticas da autoria na Idade Média.

Para Chartier, a abordagem feita por Foucault demonstra a existência da “função-autor” já na Idade Média, contestando o surgimento desta a partir da Idade Moderna.

As lacunas historiográficas existentes na investigação foucaultiana, contribuíram para que Chartier repensasse as relações da autoria literária com as produções científicas, o fazendo a partir de “reflexões soltas e exemplos derivados” de investigações anteriores sobre a história da autoria. (p.45)

Chartier critica o recorte temporal utilizado por Foucault para o surgimento da “função-autor”, onde em longa e densa análise se serve do exemplo do caso dos livreiros-editores de Londres, que desde 1557, detinham o monopólio para obtenção de copyright.

Sob a ótica de Chartier, a autoria na atualidade se reveste de três elementos fundamentais, a saber: as bibliografias figurativas representadas pelas múltiplas assinaturas num único artigo das quais participam autores de função administrativa; a supremacia da proteção jurídica dos resultados científicos sobre a proteção intelectual; e o acesso ao resultado científico onde a tecnologia digital favorece a divulgação científica, que em contrapartida, funciona como controladora do acesso aos resultados científicos, face ao alto preço das assinaturas das revistas eletrônicas. Em resumo, se a comunicação científica é gratuita, o aparato não o é.

Chartier tece uma crítica às revistas eletrônicas que, embora garantam rápido acesso ao seu conteúdo, o meio eletrônico as transforma em um banco de dados, no qual ela se apresenta como um fragmento, retirando do leitor a possibilidade de compreendê-las e decifrá-las no seu todo, o que não ocorre com a revista impressa, que permite visão mais ampla.

No penúltimo capítulo, entrevista com Chartier, foi abordada a segunda temática proposta no livro: história cultural da ciência. A história da ciência em sua perspectiva cultural é abordada pelo autor a partir de sua trajetória intelectual, que inclui o papel assumido por cerca de dez anos (1989 e 1998) como Diretor do Centre Alexandre Koyré - Histoire des Sciences et des Techniques, localizado em Paris. Este centro de história da ciência é parceiro da École des Hautes Études en Sciences Sociales e do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). As atividades desenvolvidas junto ao Centre Alexandre Koyré, nas palavras de Heloisa Bertol, facilitaram a Chartier, a compatibilização entre a “história tout court com a história da ciência, tradicionalmente vistas como irreconciliáveis, tanto pelos historiadores, quanto pelos historiadores das ciências”. (p.7)

Na entrevista, Chartier pondera a sua dificuldade inicial em assumir o cargo ao fundamento de que “jamais escrevera ou publicara trabalhos estritamente de história das ciências” (p.81), e na sequência, avalia as duas tradições, que em seu entendimento predominavam na frança naquele momento: a “tradição estritamente histórica”, voltada para a história das instituições, biografias e história dos pensadores com o objetivo de sistematizar textos científicos; e a tradição da “epistemologia das ciências”. Esta segunda, de acordo com Chartier, além de diferir completamente da epistemologia histórica por seus discursos, objetos e conceitos, ela, ao final da década de 80, ainda não estava instalada no Centro Koyré. (p.82)

Chartier acrescenta que os discursos científicos que articulam essas duas tradições, marcaram uma “nova história das ciências” surgida com os sciences studies ocorridos simultaneamente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Segundo o autor, a história da ciência a partir dos science studies foi contemplada com uma terceira tradição mais próxima da “história cultural”.

O autor analisa os sciences studies em torno da “controvérsia”, dizendo com isto, que as teorias científicas não dizem respeito somente ao conteúdo científico, mas ao conceito de ciência, aos espaços e temporalidades, à representação do mundo social e regras sociais das comunidades científicas. Nesse sentido, aponta duas obras que sintetizam os objetivos dos sciences studies, e que, para ele, marcaram a ruptura e deram início a essa “nova história das ciências”: Leviathan and the Air Pump. Hobbes, Boyle, and the experimental life (PRINCETON:1985) de Steven Shapin e S. Schaffer e The Great Devonian Controversy… (CHICAGO:1985) de Martin Rudwick.

Sobre essa posição do autor, há algumas ressalvas a serem feitas. Percebemos que ele deixou de contemplar importantes autores e obras representativos dessa “Nova História da Ciência”, que inserem no discurso científico dimensões sociais e culturais.

Ludwik Fleck, por exemplo, seria um dos autores representantes do que Chartier chama de “nova história da ciência”. Em 1935 no livro Genesis and Development of a Scientific Fact, Fleck utilizou a sífilis, para demonstrar o entrecruzamento dos saberes “esotéricos” (cientistas) e “exotéricos” (saber popular), demonstrando o condicionamento histórico-social como componente do pensamento científico.

Após este recuo ao período pré-kuhniano, importante dizer que é criticável que Chartier tenha se reportado ao science studies, sem falar em The Structure of Scientific Revolutions (CHICAGO: 1962), obra em que Thomas S. Kuhn (em certa medida tributário do pensamento de Koyré), propôs a análise das ciências duras a partir do diálogo com o campo das ciências humanas e sociais. Para Kuhn as operações de um cientista no laboratório não são “o dado” da experiência, mas “o coletado”, o que faz do cientista (ser social/cultural) um agente não-passivo no processo científico.

Quanto aos sciences studies- parte do Programa Forte em Sociologia da Ciência da Universidade de Edimburgo[4]- é conveniente lembrar que vários debates importantes foram desencadeados a partir da obra kuhniana.

A fim de ilustrar o meu argumento de que o marco cronológico inaugural da “nova história da ciência” adotado por Chartier é inconsistente, cito aqui dois expoentes do movimento sciences

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