Fichamento - O Saber Local: Fatos e leis em uma perspectiva comparativa
Por: Sara • 24/4/2018 • 2.315 Palavras (10 Páginas) • 534 Visualizações
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resposta "vá plantar batatas".
O caso de Regreg mostra como o senso comum é pautado com Lei em algumas sociedades. Regreg nunca foi uma ameaça ao sistema, apenas à etiqueta pública. Assim, Geertz chama a atenção para o que chama de antropologia interpretativa, comparando nossa visão do membro do conselho com outras formas de saber local, não só torna aquela visão mais consciente de outras formas de sensibilidade jurídica que não a sua, assim como a faz mais consciente da qualidade precisa de sua própria sensibilidade.
Nesse momento do texto, o autor introduz três conceitos que só conseguimos compreender abrindo nossa mente. São variedades distintas de sensibilidade jurídica, de culturas diferentes, e Geertz tenta estabelecer uma conexão entre essas sensibilidades e as visões que são nelas incorporadas sobre o que realmente é a realidade. Os conceitos são haqq, dharma e adat, da cultura islâmica, índica e algo perto de malaio, respectivamente. Cada uma dessas palavras é repleta de significados. Para entendermos, o autor aproxima haqq de verdade, realidade e validade; dharma de obrigação, dever e mérito; adat de prática, consenso social e estilo moral. Lembrando novamente que são conceitos que nossa cultura não permite entender por inteiro.
O haqq está presente em vários níveis da cultura islâmica. No nível religioso é empregado para Deus, para o Corão (haqq é também um dos nomes de Deus). No nível metafísico representa a fatualidade, a essência, a natureza legítima, “núcleo inteligível de algo que existe”. O nível moral é facilmente visto no Marrocos, onde frases como “O haqq está com você” e “O haqq está dentro de você” são usadas cotidianamente. “O haqq está dentro de você” quer dizer que você está errado, foi injusto ou parcial, no sentido de você sabe a verdade, mas não a admite. Já “O haqq está com você” significa que a razão está do seu lado e também entra de certo modo no nível jurídico, pois também significa que você tem direito a isso, podendo representar um direito de propriedade ou um dever contratual. O haqq no nível jurídico representa uma reinvindicação passível de ser atendida, um título válido, um direito assegurado e até mesmo a própria justiça ou o próprio direito.
O autor também chama atenção para o testemunho normativo da administração islâmica da justiça. A palavra dos homens (e quando convém, das mulheres) é muito mais valiosa do que qualquer documento escrito. A fala é o elemento principal dos julgamentos nos tribunais. Geertz parafraseia Lawrence Rosen sobre práticas contemporâneas no Marrocos: não é o documento que torna o homem confiável, e/sim o homem (e, em determinados contextos, a mulher) que dá autenticidade ao documento.
Isso tem relação direta com o haqq, uma vez que representa a verdade e todo humano deve respeitá-lo. A cultura islâmica dedica-se ao esforço de assegurar-se e reassegurar que seus fatos são respeitosos. E não suas leis, como é típico da cultura ocidental (sem necessariamente haver sucesso para ambos).
Geertz diz que traduzir dharma é ainda mais difícil que haqq. Para J. Gonda, um especialista em sânscrito, é uma tarefa impossível. Entende-se como dharma (entre muitas outras coisas) uma doutrina cósmica do dever, na qual cada espécie no universo, fosse ela humana, transumana ou infra-humana, tem, por virtude de seu destino, uma tarefa ética a cumprir e uma natureza a expressar. Já para o direito, uma noção de código de justiça é mais relevante. O que mais distingue a sensibilidade jurídica dos índicos das outras é que o direito e a obrigação são considerados como relativos à posição na ordem social. Já a ordem social, é definida transcendentalmente. Enquanto o haqq negocia com o “é” e o “deve ser”, transformando a lei em uma espécie de fato, o dharma trabalha com o fato transformando-o em lei. Vale lembrar que a diferenciação da justiça pela posição social não é exclusiva dessa cultura. No nosso caso, há o juizado de menores, por exemplo. É a noção de que os códigos que regulamentam o comportamento dos vários seres (inclusive inanimados) que define o que eles são primordialmente, o dharma, que distingue o direito índico. O dharma é jurídico e fatual.
Além disso, para a cultura índica um rei para proteger o dharma é essencial. Segundo o Código Manu "o dharma, se destruído, destrói, se protegido, protege.” E ninguém melhor para protegê-lo senão o rei. O papel do rei para o direito índico é tão significativo quanto o testemunho normativo para o direito islâmico. O rei é também o responsável por manter o equilíbrio da sociedade índica através do poder dharmico.
Contam-se duas estórias para o entendimento de dharma. A primeira diz respeito a um julgamento idêntico ao que Salomão, rei de Israel teve que enfrentar. Eram duas esposas de um homem polígamo, uma considerada feia e a outra considerada linda. A feia tinha um filho com o homem, já a linda era incapaz de engravidar. A feia, por sua aparência era menosprezada por seu marido enquanto a linda recebia de todos os mimos. Isso, gerava extrema inveja na feia, que então resolveu se vingar. Mostrou para todos os vizinhos como amava o filho e como ele era tudo pra ela. Uma noite, enforcou-o e colocou-o ao lado da cama da linda, para poder incriminá-la. Durante o julgamento, o juiz (uma entidade respeitadíssima) disse que aquela que fosse inocente ficaria sujeita a fazer o que quer que ele mande, e o que ele mandou era altamente indecoroso. A esposa culpada se sujeitaria mil vezes se necessário para se provar inocente. A esposa inocente, disse que nunca se sujeitaria a tal coisa. Com isso, a linda foi declarada inocente, e a feia culpada, com a justificativa de que uma mulher tão consciente de seu dharma a ponto de preferir submeter-se à morte para não desobedecê-lo obviamente não poderia ter cometido um ato tão "adármico" como o de matar uma criança, enquanto que uma mulher tão indiferente ao seu dharma seria certamente capaz de matar até seu próprio filho.
A outra estória trata de um homem conhecido por sua força absurda, que em um dia de raiva veio a abandonar sua esposa. Um deus, então, tomou sua forma e passou a viver com sua mulher, como se fosse o próprio homem. Quando mais calmo, o verdadeiro homem voltou a casa e deparou-se com um homem idêntico a ele. O caso foi apresentado aquele juiz (a identidade respeitadíssima), que ciente da força do homem, propôs que os homens levantassem uma pedra gigantesca. O deus conseguiu levantar a pedra acima da cabeça, já o marido apenas alguns centímetros. Assim, o juiz percebeu que a força do que tinha levantado a pedra acima da cabeça era
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