A tese de construção do povo brasileiro
Por: Ednelso245 • 11/10/2018 • 3.279 Palavras (14 Páginas) • 399 Visualizações
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Nas memórias da expedição científica, publicadas 4 anos depois, as notas sobre o clima e a terra (sua flora e fauna) aparecem primeiro, e a dificuldade para obtenção de dados é notória. Foi grande o esforço para medir a temperatura e os ventos, e também para entender o diferente regime das águas de região tão extensa (em geral chuvas de setembro/outubro a dezembro), com rios que secavam em grande parte do ano. Concluíram: a seca acontecia de forma progressiva, de leste para oeste (a vegetação assim indicava), e mais, a área castigada pela seca tenderia a aumentar, o culpado: o homem. “Em toda a zona, o homem procura apressar por todos os meios a formação de deserto, pela destruição criminosa e estúpida da vegetação”, afirmavam os doutores. A utilização de lenha por companhias de transporte ferroviário e fluvial (na região da Bahia) e, em toda a região, a prática da coivara 7, que estaria destruindo a vegetação até em áreas próximas dos cursos de água ⎯ chamas incontroláveis acabariam com a vegetação “naturalmente enfezada [que dificilmente rebrotava] e que protegia a água escassa daquelas zonas”. A solução seria o reflorestamento, pois a construção de açudes, grandes ou pequenos, como muitos advogavam, só atenderia necessidades prementes nos períodos da seca, em nada contribuindo para a efetiva solução do problema que extrapolava as épocas de grandes estiagens. (NEIVA; PENNA, 1999, p. 77-78; 83-84)
Ao mesmo tempo que analisavam a flora, que muito informava sobre os tipos de solo (pouco férteis na maioria da área), os doutores observavam os animais, minúsculos ou de grande porte, perniciosos ou úteis ao homem e, principalmente, olhavam os sertanejos. Os habitantes da terra, que viviam dispersos por uma região em que os centros urbanos pontuavam imensas áreas praticamente desabitadas, a maioria vivendo em extrema miséria, doentes.
Impaludismo, raiva, bócio, doença de Chagas, enfermidades nervosas e dos olhos (como o tracoma), difteria, pneumonia, ancilostomose, febre amarela. Segundo o diagnóstico dos doutores, o homem do interior do Brasil não vivia, mas sobrevivia e muito mal. Era preciso curá-lo e, principalmente, educá-lo. Segundo Neiva e Penna, devido ao abandono e ignorância em que se encontrava aquela população, eram as pouco eficientes terapêuticas populares e a nefasta prática do curandeirismo os recursos utilizados pelo sertanejo para combater as doenças e tentar manter a saúde. Afirmavam: “Em localidades onde há médicos, estes são consultados em último caso; primeiramente apelam para as rezas e as medicações [populares] em uso.” (NEIVA; PENNA, 1999, p.162)
Mal educado, abandonado à própria sorte, o sertanejo usaria uma terapêutica tão exótica quanto ineficiente. Alho, sal, álcool, limão; raspas de troncos de árvores, frutos, infusões de folhas ou resinas de plantas nativas. No combate às enfermidades e acidentes com animais peçonhentos (especialmente cobra) a utilização de substâncias que a tradição popular consagrava, e os médicos consideravam inócuas, era grande. Outro aspecto que chamou a atenção dos médicos foram as crendices relacionadas à cura, que pululavam por toda parte. Assim, para as pessoas da região, nada mais eficiente para combater mordida de cão com raiva do que colocar na boca da vítima a chave do sacrário de uma igreja e tratar o local da mordedura com a ponta queimada de chifre de veado. Beber água servida no osso hióide da garganta do guariba (pequeno macaco da região) e comer a traquéia e músculos da garganta do animal, era considerado remédio certo contra o bócio. Contra o impaludismo, penas torradas de ‘galinha de angola’, cujo sangue era bebida eficiente para o combate à pneumonia. A aplicação tópica de sarro de cachimbo (com ou sem adição de limalha de ferro ou limão) era, para muitos, remédio poderoso contra enfermidades dos olhos.
Rezas variadas e amuletos diversos (como uso do dente de jacaré preso no chapéu) completavam o arsenal terapêutico dos homens do Brasil central, região onde a crença no mau olhado de alguns indivíduos, que com sua presença aniquilariam qualquer terapêutica, e no poder de curar de algumas pessoas era, segundo Neiva e Penna, “verdadeiramente espantosa”, mesmo entre “as pessoas de maior cultura” (NEIVA; PENNA, 1999, p.161-162).
Associadas em geral a ignorância e miséria, as crendices e práticas populares de cura não seriam, desta forma, o simples resultado da falta de educação, afinal eram compartilhadas por “pessoas de maior cultura”, como diziam os próprios doutores. Assim, o que emergia das memórias de Neiva e Penna eram práticas há muito arraigadas no cotidiano das pessoas, ricas e pobres, que as reelaboravam e empregavam no dia-a-dia, por vezes combinando-as com saberes utilizados pelos médicos no século XX a utilização de calomelanos é um exemplo.8 Muitas destas práticas do sertanejo, como a ingestão de urina contra a raiva ou a utilização do alho e do limão contra várias moléstias (NEIVA; PENNA,1999,p.162-163), lembravam uma medicina de outros tempos, quando medicamentos oficiais tinham nos excretos humanos e de animais componentes certos e poderosos, e quando a distância que separaria a cozinha do laboratório ou do consultório médico não era ainda tão grande parte do arsenal terapêutica da medicina do Novecentos, o ácido cítrico (presente no limão e outras frutas), usado como auxiliar terapêutico contra algumas doenças, denunciava a proximidade. (BERTUCCI, 2004, p.220-226)
Dessa forma, muito das práticas populares de cura que gozavam de grande prestígio entre os sertanejos eram o resultado da diversidade, trocas e novas criações de saberes de diferentes origens (de índios, brancos e negros) e épocas. Valores e crenças que haviam sido incorporados e reorganizados de forma singular por indivíduos de classes e grupos sociais diferentes, em um movimento contínuo de idéias que ganhavam significados diversos e inéditos ao longo dos anos (GINZBURG, 1990; 1993; CHARTIER,1990, p.121-139). Sob essa perspectiva, ganhariam outro entendimento diferentes práticas observadas por Neiva e Penna.
Entretanto, para os dois médicos a questão era outra: era preciso acabar com o que classificavam de ignorância que, com várias intensidades, infestava o interior do Brasil, só assim as doenças poderiam ser tratadas e uma ‘nova população’, saudável, surgiria. Seriam os cuidados médicos dos problemas de saúde e a educação da população, que colaborariam definitivamente para forjar o povo brasileiro, pois o que existia no sertão não seria mais que o resultado de séculos de abandono, que havia resultado em miséria física e intelectual das pessoas. Era preciso mudar, com
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