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A Propósito da Ideia de um Sistema de Direito

Por:   •  14/4/2018  •  8.280 Palavras (34 Páginas)  •  292 Visualizações

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Cada vez que uma situação imprevista der origem a um novo problema, que apresentar o risco de suscitar um novo conflito, recorrer-se-á a autoridades administrativas ou judiciárias para resolver o novo litígio. Na medida do possível, a regra de decisão se reportará a uma regra existente, que será ampliada por meio de analogia e cujo alcance será limitado pela introdução de uma ou outra distinção.

Quando o número de decisões autorizadas e de regras subjacentes constituir um conjunto considerável, formar-se-á pouco a pouco uma classe de especialistas, cujo papel será reunir essas regras, adaptá-las às situações novas e completá-las em caso de necessidade. Apenas mais tarde é que se pensará em instituir uma autoridade legislativa especializada, essencialmente de natureza política, mas que poderá intervir, se for o caso, nas matérias civis e penais.

Nessa concepção de um direito, que nasce e se desenvolve gradualmente, por ocasião de conflitos que advêm espontaneamente, ainda não se pode pensar no direito como num sistema. A ideia de um sistema de direito, capaz de responder de antemão a todas as questões que poderiam surgir, só pode nascer após uma longa evolução histórica, durante a qual se resolveu grande número de problemas e se elaboraram procedimentos e técnicas de solução.

Por que um sistema de direito não pode ser assimilado a um sistema estático, tal como um sistema formalizado de lógica ou de matemática?

Para compreender isso, cumpre dar-se conta de que um sistema formalizado é elaborado de modo que se lhe elimine toda ambiguidade e toda controvérsia. Com esse intuito, constrói-se uma língua artificial de que se enumerará, de modo exaustivo, todos os signos primitivos. Indicar-se-á, igualmente, a maneira de combiná-los para formar expressões corretas. Cada um desses signos, e cada expressão correta formada a partir deles, será unívoco. Apenas com essa condição é que se poderá afirmar a validade universal do princípio de identidade; se x é igual a x (em álgebra), e p é igual a p (em lógica), é porque se decidiu de antemão que a mesma variável, que se apresenta duas vezes numa mesma expressão, sempre deve ser substituída pelo mesmo valor.

Dentre as expressões corretamente formadas, trataremos algumas como axiomas, ou seja, proposições primitivas, que consideramos verdadeiras sem as demonstrar. Formularemos igualmente regras de dedução que permitirão demonstrar, a partir dos axiomas, teoremas, assim como novos teoremas a partir dos axiomas e dos teoremas já demonstrados.

A condição indispensável ao funcionamento de tal sistema é a coerência, o fato de não se afirmar, dentro do sistema, uma proposição e sua negação. Com efeito, sem o respeito ao princípio de não-contradição, é impossível construir um sistema formal utilizável: se, entre os axiomas ou os teoremas do sistema se encontrassem uma proposição e sua negação, nada garantiria a verdade dos axiomas ou dos teoremas demonstrados, pois uma das proposições demonstradas, ou afirmadas verdadeiras, se mostraria falsa.

Em contrapartida, o sistema construído poderia não ser completo: poderia conter proposições irresolúveis, das quais não se poderia demonstrar, dentro do sistema, nem a verdade nem a falsidade. Uma proposição assim é considerada independente do sistema; pode-se acrescentá-la ao sistema ou acrescentar sua negação, sem que o sistema fique incoerente (cf. as geometrias não-euclidianas).

Um sistema formalizado, construído de uma forma tão rígida que impõe a univocidade dos signos, que limita as capacidades de expressão e de demonstração do sistema, é isolado do resto do universo, e não está em interação com elementos que lhe são exteriores. Veremos que é a ausência dessas condições que distingue nitidamente um sistema jurídico de um sistema formal.

Se é verdade que o direito visa ao estabelecimento de uma ordem estável, que garantiria a segurança jurídica, a uniformidade (a igualdade perante a lei) e a previsibilidade, ele nunca pode ser isolado do contexto social no qual se supõe que atue. Com efeito, mesmo que se reconheça o papel específico do direito, a busca da segurança jurídica, a busca de um consenso social não lhe permite desprezar os valores que ele compartilha com a moral e a política, a saber: a justiça e o bem comum ou o interesse geral. Por outro lado, e na medida em que é aplicável a pessoas que também são regidas por outros sistemas, tais como um direito estrangeiro ou um direito religioso, ele não poderá desprezar-lhes a incidência. Enfim, o caráter rígido, portanto estático, do sistema não poderia resistir indefinidamente às mudanças, de ordem técnica e cultural, ocorridas na sociedade. Com efeito, se o direito é encarado sob seu aspecto teleológico, ou seja, como um meio visando a um fim que deve ser realizado no seio de uma sociedade em mutação, ele não pode ser indiferente às consequências de sua aplicação. Para adaptar-se a seu papel de meio, o direito deverá flexibilizar-se, introduzir em sua estrutura e em sua formulação elementos de indeterminação.

O que caracteriza um sistema assim é que nele toda decisão jurídica, trate-se de promulgar uma regra ou de tomar uma decisão judiciária ou administrativa, emana de um poder habilitado para tomar essa decisão. Por essa habilitação, um órgão é considerado competente para tomar a decisão.

Remontando pouco a pouco, o conjunto do sistema dependerá, no final das contas, de uma norma fundamental que converte, em fonte originária do sistema, decisões emanantes de autoridades políticas ou religiosas, tais como os pais fundadores da cidade, que estarão na origem da primeira constituição. O caráter dinâmico do sistema se manifesta pelo poder, de maior ou menor amplitude, conferido aos órgãos habilitados a tomar decisões jurídicas. Esse poder é mais amplo no chefe de um Parlamento soberano que não é controlado por nenhuma instância superior. Mas ainda continua considerável, para Kelsen, no chefe de instâncias judiciárias que não se limitam a ser apenas “a boca que pronuncia as palavras da lei”.

Apenas a concepção retórica permite compreender o papel da ficção no direito. Assim é que, para chegar a uma solução que lhe parece mais equitativa, o juiz, porém o mais das vezes o júri, recorrerá à ficção, graças à qual, sem modificar a regra e sem a substituir por outra, chegará ao resultado desejado no caso particular submetido à sua apreciação.

Ainda que o juiz seja obrigado a aplicar a lei, ele dispõe, não obstante, de um conjunto de técnicas próprias do raciocínio

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