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“Mitologia” e “Cosmologia” Kyikatêjê, práticas religiosas e organização social

Por:   •  11/1/2018  •  17.520 Palavras (71 Páginas)  •  379 Visualizações

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Se, como diz Malinowski referindo-se a E. Sidney Hartland, em Primitive law, “[o] selvagem está longe de ser a criatura livre e desimpedida de Rousseau” (2003: 15), é porque, de fato, ele é um ser humano como outro qualquer: sujeito a paixões e, também, a restrições. O que pretende, então, Malinowski com esta observação? Indicar, simplesmente, que a “lei” e as forças legais de grupos etnicamente diferenciados possuem validade interna e que, por seu turno, variam tanto no espaço, quanto no tempo. Por isso é que:

“[q]uando começamos a investigar por que as regras de conduta, por mais duras, fastidiosas e desagradáveis que sejam, são obedecias; o que faz com que a vida privada, a cooperação econômica e os eventos públicos ocorram de maneira tão uniforme; no que, em suma, consistem as forças da lei e da ordem entre os selvagens... – a resposta não é fácil, e o que a antropologia tem a dizer está longe de ser satisfatório. Enquanto se podia sustentar que o “selvagem” era realmente selvagem e seguia apenas intermitente e folgadamente a frágil lei que possuía, não havia problema. Quando a questão se tornou real, quando ficou claro que a hipertrofia de regras e não a falta de leis era característica da vida primitiva, a opinião científica mudou-se para o extremo oposto: além de passar a ser visto como cidadão obediente à lei, o selvagem tornou-se um axioma que, submetendo-se a todas as regras e grilhões tribais, segue a tendência natural de seus impulsos espontâneos, e, por assim dizer, desliza ao longo da linha de menor resistência.” (2003: 15)

Todavia, na presente monografia, optei por outro caminho, pois, no tocante à relação entre as categorias de identidade/etnicidade e religiosidade não existe conexão direita de causa e efeito, mas sim de juízo hermenêutico, de onde se pode deduzir, por exemplo, as concepções mitológicas e originárias dos Kyikatêjê, no que diz respeito aos usos e à proteção da floresta. Não se trata, portanto, de extrair paradigmas universais de conduta em vista dos quais todo e qualquer povo indígena da Amazônia brasileira agiria, mas sim encontrar nos limites de sistema jurídico diferenciado a relação entre território e identidade, no que diz respeito ao direito que cada povo indígena tem de ser diferente.

No corpo deste trabalho, deve-se entender o termo “religiosidade” não com a mesma acepção positivista que adquiriu na terminologia clássica das Ciências Sociais. De fato, ele possui, aqui, carga semântica modesta, uma vez que denota, tão somente, aquilo que denominarei de “ritmo cotidiano de vida”, isto é, hábitos e práticas culturais. Porém, seguindo as observações de Malinowski (2003), tenho que concordar que não é simples tratar do modo de vida e da organização social de outros povos, como, por exemplo, o povo Kyikatêjê. Entretanto, o capítulo em tela, estabelece as bases sobre as quais esta dissertação se fundamenta. Penso que as informações nele contidas auxiliarão num melhor entendimento do tema que proponho e da discussão (jurídica e antropológica) que ensejo.

Capítulo I – Sobre o campo de pesquisa e a temática

O sentimento que os Kyikatêjê têm de sua própria aldeia é, sem dúvida, bastante complexo e tentar defini-lo não é tão simples. De um modo bastante geral, pode-se dizer que eles se representam como povo da floresta e, portanto, como dependendo da mesma para sobreviver. Aliás, quando perguntados acerca do que pensam sobre a sua aldeia, eles imediatamente associam-na, em seu discurso, à floresta e aos usos que fazem dela, no sentido de retirar-lhe tudo o quanto necessário à sobrevivência do grupo, não apenas em termos biológicos, mas, ainda, em termos étnicos e culturais.

As imagens e representações que o povo Kyikatêjê tem de sua religiosidade tradicional misturam-se às concepções de terra e território e, também, a práticas, vivências e memórias, consubstanciadas em um forte sentimento de pertença e identidade. Todavia, narrar a história deste povo e interpretar-lhe o modo de vida ou as nuances de seu sistema social demandaria tempo que, por sua vez, implica num permanecer constante, ou seja, num deixar-se estar e assim ficar. É bem verdade, porém, que não há qualquer necessidade de ser o outro para compreender-lhe os motivos e razões; afinal, como bem disse Roque de Barros Laraia (2006), numa referência explícita ao livro O Crisântemo e a Rosa de Ruth Benedict, “... a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo”.[5]

O esforço do pesquisador é de traduzir os dados e informações coletados durante a pesquisa de campo[6], de maneira que torne inteligível, no horizonte do registro lingüístico que integra, o sistema social que estudou. Por outro lado, é interessante destacar que toda tradução consiste, na verdade, num exercício hermenêutico de re-definição, e, para que não se fale em erros, deve-se falar em correção.[7] Assim, o objetivo principal deste trabalho é discutir a relação entre a noção de religiosidade indígena tradicional e o conceito antropológico de etnicidade, no tocante aos usos e à proteção da floresta pelos Kyikatêjê. No entanto, para que isso seja melhor apreendido, indicarei, a seguir, alguns aspectos culturais da estrutura social do povo em tela para que o leitor possa, também, acercar-se do debate que ora proponho.

1.1. Dimensão político-jurídica e organização social Kyikatêjê

A situação jurídica atual da Reserva Indígena Mãe Maria (RIMM) está regulamentada pelo Decreto nº. 93.148, publicado em 21/08/1986. [8] Com extensão de 62.488 ha, Mãe Maria configura aquilo que o Estado brasileiro entende como reserva indígena, isto é, “... área destinada a servir de habitat a grupo indígena, com meios suficientes de subsistência” (Lei 6.001/73, Art. 27).

[pic 1]

Imagem 1: Território da Reserva Indígena Mãe Maria. Fonte: ENTE. Estudo Etnoecológico da Terra Indígena Mãe Maria – Set./2006 – Relatório ENTE (Empresa Norte de Transmissão de Energia) – JGP – Consultoria e Participações Ltda. – São Paulo.

Com bioma de natureza amazônica, Mãe Maria integra a Bacia do Tocantins, com floresta ombrófila densa, isto é, cerrada e com árvores altas e verdes.[9] No mapa, da página anterior, pode-se visualizar a proximidade entre Mãe Maria e o rio Tocantins. Ora, em Mãe Maria, habitam Parkatêjê, Kyikatêjê e Akrantkatêjê. De acordo com o relato de informantes, os Akrantkatêjê, também conhecidos como o “grupo da montanha”, encontram-se distribuídos entre as aldeias dos

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