A Jurisprudência total deve ser vista como obra exemplar da sabedoria jurídica.
Por: eduardamaia17 • 15/7/2018 • 29.965 Palavras (120 Páginas) • 314 Visualizações
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Donde vem a relevância jurídica das sentenças rotais? Em primeiro lugar, do valor dos precedentes judiciais, sobretudo tratando-se de um Tribunal de última instância, que influi nas sentenças dos Tribunais inferiores, dando critérios a seguir na vida eclesial.
Daí quis o Papa ressaltar a importância de se chegar na Rota Romana a uma jurisprudência comum, a uma «unidade nos critérios essenciais de justiça», como «bem eclesial público de particular importância».
Com efeito, os tribunais locais permitem que a justiça seja imediatamente acessível, tendo em conta a cultura e a mentalidade particulares. Contudo, as suas sentenças devem estar «fundamentadas nos princípios e nas normas comuns de justiça», dada a comunhão na Igreja.
Nestes cem anos, a jurisprudência da Rota Romana ofereceu um contributo significativo no campo matrimonial, concretizado na codificação vigente. Como conseguir essa jurisprudência unitária que pretende o Papa, isto é, uma comum interpretação e aplicação das actuais normas jurídicas? É sabido que, presentemente, a jurisprudência da Rota Romana é contrastante em vários temas, e os juízes diocesanos seguem naturalmente a linha que lhes parece mais adequada. Penso que a via será os auditores rotais continuarem no sulco da tradição canônica e da doutrina da Igreja, secundando nas suas sentenças as orientações que têm sido dadas pelos Papas, como manifestação da vontade do legislador.
Bento XVI chama a atenção para o fato de a aplicação da lei canônica exigir que se apreenda bem qual é a essência do matrimônio, o que nos leva a reflecir. Com efeito, para decidir sobre a existência ou não de um matrimônio concreto, é necessário saber claramente o que é o matrimônio, essa realidade antropológica, teológica e jurídica. A decisão traduz sempre a ideia que se tem do que é o matrimônio. Ora acontece que, presentemente, não existe na doutrina canónica unanimidade nem claridade sobre qual é a essência do matrimônio; mais, afirma-se que não se trata de um assunto prioritário. Antes do Vaticano II, eram desautorizadas pela Santa Sé as opiniões contrárias à então doutrina tradicional; a partir do Concílio, uma ampla corrente pretendeu rever a doutrina para a adaptar à cultura contemporânea, chegando-se a um certo estado de confusão, com consequências na resolução das causas matrimoniais. Talvez a explicação esteja em não se saber como conjugar o aspecto canónico do matrimônio (a sua validade) com o seu aspecto personalista (a vivência do casal).
Para que a jurisprudência rotal seja «obra exemplar de sabedoria jurídica» ao serviço do matrimônio indissolúvel, evitando interpretações subjetivas e arbitrárias das normas canônicas, Bento XVI reafirma o valor das intervenções do Magistério eclesiástico sobre questões jurídicas matrimoniais, em particular os discursos do Papa à Rota Romana. «Eles são uma orientação imediata para a actividade de todos os tribunais da Igreja, na medida em que ensinam com autoridade o que é essencial acerca da realidade do matrimônio». E relembra que João Paulo II, no seu último discurso à Rota (2005), advertira contra a mentalidade positivista na compreensão do direito, afirmando que a interpretação autêntica da palavra de Deus feita pelo Magistério, entendida dentro da tradição da Igreja, é jurídica e moralmente vinculativa, sem necessidade de uma declaração formal posterior.
Miguel Falcão
[1] Discurso aos membros do Tribunal da Rota Romana na inauguração do Ano Judicial (26-I-08). Título, subtítulos, revisão da tradução e comentário por Miguel Falcão.
[2] Trad.: insensivelmente, sem se dar por isso.
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Observação: um dos problemas com relação à jurisprudência rotal está em que esta é publicada com grande atraso.
Em 2016 saiu o volume C contendo as sentenças que foram julgadas pelos auditores rotais (= juízes) em 2008, com 196 sentenças.
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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
AOS PRELADOS AUDITORES, OFICIAIS
E COLABORADORES DO TRIBUNAL DA ROTA ROMANA
(24 de Janeiro de 2014)
Estimados Prelados Auditores, Oficiais
e Colaboradores do Tribunal Apostólico da Rota Romana
Encontro-me convosco pela primeira vez, por ocasião da inauguração do Ano judiciário. (...)
A dimensão jurídica e a dimensão pastoral do ministério eclesial não estão em oposição, porque ambas concorrem para a realização das finalidades e da unidade de ação próprias da Igreja. Com efeito, a atividade judiciária eclesial, que se configura como serviço à verdade na justiça, tem uma conotação profundamente pastoral, porque visa a busca do bem dos fiéis e a edificação da comunidade cristã. Esta atividade constitui um desenvolvimento peculiar da potestade de governo, destinada ao cuidado espiritual do Povo de Deus, e portanto está plenamente inserida no caminho da missão da Igreja. Por conseguinte, o ofício judiciário é uma verdadeira diaconia, ou seja, um serviço ao Povo de Deus em vista da consolidação da plena comunhão entre os fiéis individualmente, e entre eles e a comunidade eclesial. Além disso, caros Juízes, mediante o vosso ministério específico vós ofereceis uma contribuição competente para enfrentar as temáticas pastorais emergentes.
Agora, gostaria de traçar um breve perfil do juiz eclesiástico. Antes de tudo, o perfil humano: do juiz é exigida uma maturidade humana que se manifesta na serenidade de juízo e do desapego de pontos de vista pessoais. Da maturidade humana faz parte também a capacidade de se inserir na mentalidade e nas aspirações legítimas da comunidade onde se realiza o serviço. Por isso, ele deve tornar-se intérprete daquele «animus communitatis» que caracteriza a porção do Povo de Deus, destinatária do seu trabalho, e poderá pôr em prática uma justiça não legalista e abtrata, mas adequada às exigências da realidade concreta. Por conseguinte, não se contentará com um conhecimento superficial da realidade das pessoas que esperam o seu juízo, mas sentirá a necessidade de entrar em profundidade na situação
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