DESIGUALDADES DURÁVEIS
Por: Sara • 23/10/2018 • 1.945 Palavras (8 Páginas) • 274 Visualizações
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Sabe-se, como ensinam Le Goff e Halbwachs, que a memória tem a ver com poder e, nesse sentido, o açúcar perde enquanto o petróleo ganha. Açúcar e petróleo formam o mais recente contraponto na economia baiana, que já conheceu os do açúcar e do tabaco e do açúcar e da mandioca. Além da escassez de materiais que lembrem de açúcar, há outro problema em relação à qualidade daquilo que se lembra. Na região da pesquisa têm sido criadas fortes condições para que a cultura operária que se formou nos canaviais e na usina seja esquecida, mantendo-se apenas as lembranças adoçadas da relação senhores/trabalhadores.
Se não o primeiro, certamente o mais importante movimento organizado de trabalhadores da terra nessa região nas últimas três décadas foi o relativamente recém-formado MST. Há (pobres) acampamentos do movimento na estrada que liga SFC à Santo Amaro, nas terras que já pertenciam à Usina Santa Elisa. O MST é, por assim dizer, uma válvula de escape para aqueles aos quais a terra sempre foi negada. O messianismo desse movimento deve ter atingido os ex-operários da usina! Mas isso ainda não se constitui numa memória, digamos assim, solidificada, como no caso do Projeto Memória para a celebração dos 50 anos da Petrobras. Antigamente ninguém tirava retratos num matrimônio, mas este durava muito. Hoje qualquer casamento, até de pessoas de baixa renda, é amplamente fotografado e até filmado, mas a união é de curta duração. Tais fotos “valem”, para nossa memória, bem menos que as poucas fotos do passado.
Quase todas as famílias que antigamente tinham prestígio, os donos de usinas e canaviais, que já faziam o belo e mau tempo em SFC, se retiraram para Salvador ou São Paulo.As narrativas em torno do lazer e religiosidade dos informantes mais velhos remetem a grupos culturais ligados ao terreiro de candomblé que se localizava no interior da Fazenda D. João, sendo um lugar comum das festas, para os moradores do local. A vida cultural se construía em torno das casas de santo: grupos de samba, reisados e carurus. Festas que, muitas vezes, “uniam”, no mesmo espaço físico, patrões e empregados e saciavam a fome dos funcionários.
A terminologia da cor, a forma pela qual os informantes se autodefinem e definem os outros, foi um dos alvos da pesquisa. Nas entrevistas e nas conversas captadas durante a observação participante, a cor, não obstante a insistência dos pesquisadores, se apresenta quase como tema exógeno: não surge espontaneamente, nem mesmo quando se fala de cultura. Isso leva a refletir sobre o que podem ser as relações raciais e a cultura negra numa região onde os brancos são minoria. O termo “cultura negra” tende a ser usado, sobretudo, pelos animadores culturais da prefeitura, que provêm de Salvador e que fazem da assim dita cultura afro-baiana um modelo a ser seguido – no entendimento de que aquele modelo também pode ser aproveitado para aumentar o “potencial turístico” do município. A relação Salvador-Recôncavo, no que diz respeito à criação de uma cultura negra, precisa ser problematizada em detalhe. Até então, pode se dizer que, por cultura afro-baiana entende-se na realidade cultura afro-soteropolitana
Se falar de cultura negra é algo pouco problemático, dizer-se negro já corresponde a uma postura política frente ao racismo, mesmo que discreta. Ser negro aparece muito mais nas narrativas dos operários sindicalizados na Petrobras do que entre os ex-trabalhadores da usina, mesmo se levamos em conta os que desenvolvem tarefas mais especializadas. Dizer-se negro aparece ainda mais entre os filhos desses antigos funcionários da Petrobras. Se a cor não surge quase nunca espontaneamente, o tema da hombridade, muitas vezes associado ao tema do respeito e da honra, aparece como central nas falas e memórias. Trata-se de um jogo centrado em torno da noção de respeito que une homens que podem se encontrar em posição muito diferente um do outro. A sensação que tivemos durante as entrevistas e as conversas informais é que mencionar a cor e uma possível tensão racial na região, sobretudo quando a conversa gravitou ao redor de lembranças de um passado tido como harmonioso, é como querer estragar uma comida boa.
Percebe-se que a instalação da Petrobras afetou profundamente as relações de gênero, assim como elevou dramaticamente o padrão de vida dos interessados. Com relação ao mundo industrial-agrícola do açúcar, o petróleo significou uma masculinização do mercado de trabalho – na região, a Petrobras empregou somente homens.
A partir dos anos 60 as famílias de petroleiros começam a mudar com relação aos arranjos familiares dos trabalhadores do açúcar: a mãe deixa o trabalho nas plantações de açúcar ou nas casas de família para cuidar da sua própria família. Nesse momento, há aumento na escolarização dos filhos, tendo em vista que não há mais necessidade de trabalhar, e a figura materna passa a gerenciar a ida dos filhos à escola. Como uma das consequências desse processo, os homens se distanciam mais da estrutura familiar. A Abolição redefine as noções em torno do trabalho físico. Ela possibilita e, consequentemente, estimula a mobilidade horizontal. Depois de gerações de pessoas impossibilitadas de mudar de dono/patrão por escolha própria, grandes números de trabalhadores, agora livres, nessa região, como em muitas outras nas Américas, se mudam para a cidade ou migram regularmente entre plantações e usinas limítrofes A outra determinante mudança, chamada de segunda abolição por alguns informantes, acontece com a chegada da Petrobras: pela primeira vez, valoriza- se e paga-se bem o “técnico” e o trabalho manual especializado. A empresa oferece critérios (quase) universais com relação às hierarquias e ascensão social
Vale a pena ressaltar que o impacto da Petrobras na economia local é, hoje, menor que há duas décadas. Poucos dos antigos funcionários da Petrobras trabalham nessa empresa, muitos deles são ou se sentem formados, mas sem emprego, ou desenvolvem atividades econômicas bem menos remuneradas que aquelas dos pais. A pesquisa mostra,
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