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Leitura de "A Autobiografia de Nicolae Ceausescu", de Ujica, a partir de "O Pensamento e o Cinema", de Deleuze

Por:   •  15/10/2018  •  2.607 Palavras (11 Páginas)  •  255 Visualizações

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O terceiro momento da relação entre cinema e pensamento vai já tratar-se da identidade do conceito e da imagem. Aqui, o pensamento vai manifestar-se na acção, dando origem ao pensamento-acção, momento máximo da unidade sensorial motriz (imagem-movimento), que exprime a relação entre o homem e o mundo. Assim, o cinema não vai apenas exteriorizar os sentimentos e os pensamentos do homem na natureza; vai ser também o próprio homem que vai exteriorizar o seu pensamento através da sua reacção no mundo exterior, ou seja, através da sua acção. Esta acção vai também potenciar um pensamento-acção colectivo, a constituição do sujeito colectivo (as massas) que vai exteriorizar o seu pensamento na Natureza. Mas, fundamentalmente, é este terceiro momento da relação do cinema com o pensamento que vai estabelecer e fortalecer o elo entre o homem e o mundo, ou entre o pensamento e a Natureza.

Segunda parte:

Na segunda parte deste capítulo Deleuze vai então começar a fazer a passagem para o cinema moderno e a sua relação com o pensamento, que já não está relacionado com a imagem-movimento e com a acção. Para isso, Deleuze vai evocar as ideias de Antonin Artaud (escritor, poeta, actor e artista francês da primeira metade do século XX). Deleuze diz que as ideias de Artaud a nível da relação do cinema com o pensamento à primeira vista podem parecer próximas das ideias de Eisenstein, mas que se distinguem num aspecto crucial. Tal como Eisenstein, Artaud acreditava que o cinema cria vibrações neurológicas que produzem o choque que leva ao pensamento; que se estabelece uma união do pensamento consciente e do inconsciente do pensamento; e que o pensamento leva à imagem.

No entanto, para Artaud, o que esse processo revela não é a potência do pensamento em pensar o todo do filme, mas sim a impotência do pensamento em pensar o todo (que é tanto o todo do filme como o Todo numa dimensão mais metafísica), e também a impotência do pensamento em pensar-se a si mesmo. Assim, o pensamento é confrontado com a impossibilidade de pensar, o Impensável, e desta forma introduz-se no cinema a figura do Nada, o Indeterminável, ou o que não é possível evocar – ou seja, o avesso do pensamento, quando o pensamento se confronta com os seus próprios limites, com aquilo que não pode processar.

Assim, o cinema moderno já não força um fio condutor do pensamento como acontecia no cinema clássico (que se baseava numa voz única que era manifestada pelo encadeamento das imagens na montagem ou pela criação de metáforas), mas dá origem a uma fissura no pensamento, que produz uma força dissociante que origina a voz desta figura do Nada ou da impossibilidade do pensamento. A entrada desta voz do Nada cria então diálogos internos à imagem e a possibilidade de vozes múltiplas, nas quais a voz do espectador vai também poder inserir-se. Vemos desde logo que esta relação entre o cinema e o pensamento, ou a sua impossibilidade, já não está ligada à imagem-movimento e ao decorrer da acção, mas sim à imagem-tempo, com a suspensão da acção e a primazia de relações internas ao pensamento.

Deleuze vai então perguntar-se em que medida é que estas ideias sobre o pensamento dizem respeitos aos meios específicos do cinema, ou seja, como é que estas ideias abstractas se manifestam realmente no cinema. Vai então apontar duas formas para que o Impensável surja no cinema.

Por um lado, baseia-se no pensamento de outro teórico do cinema, Jean-Louis Schefer, que aponta para a relação do cinema com a ideia de “suspensão de mundo”, que é também uma suspensão no decorrer da acção, e que dá origem à representação de um “pensamento sem corpo e sem imagem”. Este pensamento sem corpo ou imagem, segundo Shefer, é manifestado quando na imagem se torna impossível distinguir os seus diferentes elementos, que podem ser personagens, objectos ou a paisagem. Essa indistinção entre elementos dá então origem a imagens difusas que pretendem oferecer momentos de suspensão da acção em favor das relações internas do pensamento – mas não propriamente um pensamento concreto, mas sim aquilo que não é possível pensar, tal como a imagem nos mostra que não é possível ver.

Por outro lado, Deleuze fala de outra forma de manifestação do Impensável no cinema, através de personagens cujo pensamento sofre uma petrificação, nomeadamente quando são confrontadas com algo de intolerável no mundo ou com algo de impensável no pensamento. Deleuze vai então falar da figura da Múmia, que não consegue alcançar os seus próprios pensamentos, quase como se lhe tivessem roubado o espírito. Aqui vemos ainda mais claramente que já não se trata da imagem-movimento do cinema clássico, mas sim de situações psíquicas que são manifestadas por imagens puramente ópticas e sonoras, que evocam a impossibilidade de pensar e que, desta forma, se aproximam da Imagem-tempo.

A figura da Múmia está também próxima da figura do vidente, ou seja, o sujeito que no cinema moderno perde a capacidade de reacção ou de transformar o seu destino, ou nas palavras de Deleuze, o sujeito que, quando é confrontado com algo de Intolerável ou Impensável, quanto mais vê, menos pode reagir. Neste sentido, podemos pensar na figura deste vidente como estando próxima, por exemplo, da figura do rapaz, Edmund Koehler, em “Alemanha Ano Zero” de Rossellini, que termina o filme como estando transformado na figura da Múmia, apesar de ainda conseguir agir no final, ao atirar-se do prédio em ruínas.

É desta forma que Deleuze fala então da ruptura do elo entre o homem e o mundo, que no cinema surge ligada à ruptura com a acção em favor de imagens puramente ópticas e sonoras e situações psíquicas, que resultam do confronto do pensamento com o Intolerável ou o Impensável. No entanto, Deleuze vê esta ruptura como existindo em primeiro lugar no mundo real, na medida em que diz que já não temos crença neste mundo nem em nada do que nos acontece, e que vemos o próprio mundo como situações puramente ópticas e sonoras, como se fosse um filme. Para Deleuze, então, a solução para o cinema, e que é também a sua função, é restituir-nos razões para acreditar neste mundo e acreditar no nosso elo com o mundo. Neste sentido refere também Rossellini, que dizia que quanto menos humano o mundo é, mais cabe ao artista fazer-nos acreditar na nossa relação com o mundo. Mas esta função do cinema baseia-se numa questão de crença; não se trata da criação de um mundo diferente ou transformado, mas sim o mundo como ele é. É com esta ideia de mostrar o mundo como ele é que as situações sensoriais-motoras da imagem-movimento entram em crise

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