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POSSE NO DIREITO BRASILEIRO: PARA ALÉM DO ANIMUS E DO CORPUS

Por:   •  6/4/2018  •  7.946 Palavras (32 Páginas)  •  413 Visualizações

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Partindo de sua conhecida definição de direito como interesse juridicamente protegido, Ihering conclui não haver dúvida de que se deve reconhecer o caráter de direito à posse; se a posse não fosse protegida, constituiria apenas puro fato sobre a coisa, mas só porque é protegida, assume o caráter de relação jurídica, que seria sinônimo de direito (1976, p. 90). Na doutrina portuguesa, José de Oliveira Ascensão (1973, p. 296) afirma que a posse “é um direito verdadeiro e próprio”, porque a situação do possuidor não é apenas um reflexo da defesa da legalidade por parte dos órgãos públicos, é ela própria autonomamente protegida. Há autores brasileiros que sustentaram a tese da posse como direito real, a exemplo de Orlando Gomes (2004, p. 42) e San Tiago Dantas (1979, p. 22).

A orientação majoritária no Brasil da posse como estado de fato, ou poder de fato que o direito reconhece ao titular da posse, é influenciada pela opção centenária do projeto do Código Beviláqua, enunciado no art. 485 do Código Civil de 1916 e mantido, quase integralmente, no art. 1.196 do Código Civil de 2002, de seguinte teor:

“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.

2. UM POUCO DE HISTÓRIA DA POSSE NO BRASIL

Nos primeiros séculos da existência do Brasil, após o descobrimento pelos portugueses, a posse/utilidade era o título por excelência de pertencimento das coisas. As terras foram concedidas, durante o longo período do sistema de sesmarias, com a condição suspensiva de sua utilização efetiva, sob pena de devolução ao Estado. Ou seja, sem posse efetiva, a concessão se extinguia ou deveria se extinguir.

No Brasil colonial não se transferiam propriedade ou domínio definitivos. As sesmarias foram os instrumentos legais mais utilizados pela metrópole portuguesa, mediante as quais eram concedidas ou legitimadas posses ou direitos de uso sobre vastas extensões de terras, com intuito de povoamento da colônia, desde que fossem efetivamente exploradas dentro do prazo de cinco anos (Ordenações Filipinas, L. 4, T. 43, 3), mas sem transmissão do domínio, que permanecia sob a titularidade do Reino. Não era a terra que o Reino dava, mas a posse ou usufruto dela; um verdadeiro feudo concedido. Esse sistema repercutia o modelo medieval de pluralidade de titularidades sobre o mesmo imóvel. Deu resultado em Portugal, país de pequena extensão territorial, onde foi introduzido em 1375, promovendo a exploração por pequenos agricultores de áreas não ocupadas, para aproveitamento do solo e cultivo, admitindo-se inclusive o confisco de propriedades particulares incultas para tais fins. As cartas de sesmarias, concedidas pelos capitães donatários e pelos governadores gerais haviam de receber confirmação régia, exigência essa de difícil cumprimento, dirigida ao Brasil a partir do final século XVII, na vã tentativa de controlá-las. Nas Ordenações, sesmeiro era o encarregado de dar a carta, mas no Brasil designava o que recebia a sesmaria. A transplantação desse sistema ao Brasil promoveu efeito inverso, pois foi a causa do surgimento de latifúndios largamente improdutivos; não tinha por fito o abastecimento, como em Portugal, mas o povoamento. No Nordeste foram frequentes concessões de terras mais extensas que os territórios dos atuais Estados. Não havia controle da efetiva utilidade, resultando as cartas de sesmarias em títulos abstratos perpétuos e hereditários. “Os sesmeiros, quase sempre potentados de Olinda e Salvador, pediam a terra, legalizavam o domínio e passavam a ganhar dinheiro às custas do sertanista anônimo” (Porto, s/d, p. 71), muitas vezes expulsando os posseiros pobres que já exploravam a terra. Havia, ainda, as terras concedidas para instalação das Vilas, as quais podiam aforar as não utilizadas, as terras reservadas de interesse da Coroa, as terras de marinha e as posses não legitimadas.

Esse quadro tumultuário de desorganização fundiária persistiu até à independência em 1822, tendo o Império determinado a extinção das sesmarias e procurado estabelecer algumas diretrizes, no trânsito do modelo medieval de pluralidades das titularidades sobre a coisa, para o modelo de titularidade exclusiva, da modernidade liberal, à qual a Constituição de 1824 pretendeu estar vinculada. O art. 179 dessa Constituição proclama a inviolabilidade da propriedade do cidadão e nenhuma referência faz à posse.

Em 1850 foi editada a Lei 601, conhecida como “Lei de Terras”, considerando como terras devolutas, integrantes do domínio público nacional, as que não se encontravam legitimamente dadas por sesmarias ou outras concessões do governo geral ou provincial, ou efetivamente ocupadas com posses, que (art. 3º) “apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei”. Note-se que a lei reconheceu que a posse não se fundava em “título legal”, mas era reconhecida como título social para ser por ela legitimada. Mesmo as posses que se achavam em áreas de sesmarias ou de outras concessões do governo, foram legitimadas, se iniciadas antes das medições daquelas, ou após estas, se perduravam por dez anos. É certo dizer que a Lei 601 visava à proteção dos simples posseiros ou sesmeiros irregulares, elevando sua situação fática à situação jurídica, mas incorrendo no erro de tornar ilegítimas as posses não tituladas, a partir dela.

Mas as ocupações continuaram, após a “Lei de Terras” e até mesmo nas que esta denominou terras devolutas, exigindo novas soluções legais e judiciárias. O sentido originário de terra devoluta era de sesmaria que, descumprido requisito essencial, voltava, era “devolvida” à Coroa; depois, passou a ser empregado para todo solo desocupado e vago. O Código Civil de 1916, finalmente, passou a regular de modo sistemático a posse, destacada da propriedade, no que foi seguido pelo Código Civil de 2002. A posse, portanto, é protagonista constante da evolução do direito das coisas no Brasil.

3. ANIMUS OU CORPUS: A PERSISTENTE DISPUTA DE PREDOMÍNIO

Qual o elemento nuclear decisivo para a existência ou não da posse? Para alguns é o elemento psicológico ou intencional, ou seja, a intenção de possuir a coisa como se fosse o proprietário dela (animus). Para outros é o comportamento exteriorizado equivalente ao de proprietário da coisa (corpus), independentemente da intenção. Duas atitudes podem ainda ser encontradas: 1. A primazia de um dos elementos não afasta a existência do outro, ainda que complementar. 2. A escolha de um dos elementos afasta

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