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Contos Fluminenses - Machado de Assis - Domínio Público

Por:   •  17/10/2018  •  53.705 Palavras (215 Páginas)  •  466 Visualizações

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Mais esperto que os outros, acode um leitor dizendo que a hero�na do romance n�o � nem foi inglesa, mas brasileira dos quatro costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga � rica.

A descoberta seria excelente, se fosse exata; infelizmente nem esta nem as outras s�o exatas. A Miss Dollar do romance n�o � a menina rom�ntica, nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha desta vez a proverbial perspic�cia dos leitores; Miss Dollar � uma cadelinha galga.

Para algumas pessoas a qualidade da hero�na far� perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de n�o ser mais que uma cadelinha galga, teve as honras de ver o seu nome nos pap�is p�blicos, antes de entrar para este livro. O Jornal do Com�rcio e o Correio Mercantil publicaram nas colunas dos an�ncios as seguintes linhas reverberantes de promessa:

Desencaminhou-se uma cadelinha galga, na noite de ontem, 30. Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achou e quiser levar � Rua de Mata-cavalos no..., receber� duzentos mil-r�is de recompensa. Miss Dollar tem uma coleira ao pesco�o fechada por um cadeado em que se l�em as seguintes palavras: De tout mon coeur.

Todas as pessoas que sentiam necessidade urgente de duzentos mil-r�is, e tiveram a felicidade de ler aquele an�ncio, andaram nesse dia com extremo cuidado nas ruas do Rio de Janeiro, a ver se davam com a fugitiva Miss Dollar. Galgo que aparecesse ao longe era perseguido com tenacidade at� verificar-se que n�o era o animal procurado. Mas toda esta ca�ada dos duzentos mil-r�is era completamente in�til, visto que, no dia em que apareceu o an�ncio, j� Miss Dollar estava aboletada na casa de um sujeito morador nos Cajueiros que fazia cole��o de c�es.

CAP�TULO II

Quais as raz�es que induziram o Dr. Mendon�a a fazer cole��o de c�es, � coisa que ningu�m podia dizer; uns queriam que fosse simplesmente paix�o por esse s�mbolo da fidelidade ou do servilismo; outros pensavam antes que, cheio de profundo desgosto pelos homens, Mendon�a achou que era de boa guerra adorar os c�es.

Fossem quais fossem as raz�es, o certo � que ningu�m possu�a mais bonita e variada cole��o do que ele. Tinha-os de todas as ra�as, tamanhos e cores. Cuidava deles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria ficava melanc�lico. Quase se pode dizer que, no esp�rito de Mendon�a, o c�o pesava tanto como o amor, segundo uma express�o c�lebre: tirai do mundo o c�o, e o mundo ser� um ermo.

O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendon�a era um homem exc�ntrico. N�o era. Mendon�a era um homem como os outros; gostava de c�es como outros gostam de flores. Os c�es eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesm�ssimo esmero. De flores gostava tamb�m; mas gostava delas nas plantas em que nasciam: cortar um jasmim ou prender um can�rio parecia-lhe id�ntico atentado.

Era o Dr. Mendon�a homem de seus trinta e quatro anos, bem apessoado, maneiras francas e distintas. Tinha-se formado em medicina e tratou algum tempo de doentes; a cl�nica estava j� adiantada quando sobreveio uma epidemia na capital; o Dr. Mendon�a inventou um elixir contra a doen�a; e t�o excelente era o elixir, que o autor ganhou um bom par de contos de r�is. Agora exercia a medicina como amador. Tinha quanto bastava para si e a fam�lia. A fam�lia compunha-se dos animais citados acima.

Na memor�vel noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltava Mendon�a para casa quando teve a ventura de encontrar a fugitiva no Rocio. A cadelinha entrou a acompanh�-lo, e ele, notando que era animal sem dono vis�vel, levou-a consigo para os Cajueiros.

Apenas entrou em casa examinou cuidadosamente a cadelinha, Miss Dollar era realmente um mimo; tinha as formas delgadas e graciosas da sua fidalga ra�a; os olhos castanhos e aveludados pareciam exprimir a mais completa felicidade deste mundo, t�o alegres e serenos eram. Mendon�a contemplou-a e examinou minuciosamente. Leu o d�stico do cadeado que fechava a coleira, e convenceu-se finalmente de que a cadelinha era animal de grande estima��o da parte de quem quer que fosse dono dela.

� Se n�o aparecer o dono, fica comigo, disse ele entregando Miss Dollar ao moleque encarregado dos c�es.

Tratou o moleque de dar comida a Miss Dollar, enquanto Mendon�a planeava um bom futuro � nova h�spede, cuja fam�lia devia perpetuar-se na casa.

O plano de Mendon�a durou o que duram os sonhos: o espa�o de uma noite. No dia seguinte, lendo os jornais, viu o an�ncio transcrito acima, prometendo duzentos mil-r�is a quem entregasse a cadelinha fugitiva. A sua paix�o pelos c�es deu-lhe a medida da dor que devia sofrer o dono ou dona de Miss Dollar, visto que chegava a oferecer duzentos mil-r�is de gratifica��o a quem apresentasse a galga. Conseq�entemente resolveu restitu�-la, com bastante m�goa do cora��o. Chegou a hesitar por alguns instantes; mas afinal venceram os sentimentos de probidade e compaix�o, que eram o apan�gio daquela alma. E, como se lhe custasse despedir-se do animal, ainda recente na casa, disp�s-se a lev�-lo ele mesmo, e para esse fim preparou-se. Almo�ou, e depois de averiguar bem se Miss Dollar havia feito a mesma opera��o, sa�ram ambos de casa com dire��o a Mata-cavalos.

Naquele tempo ainda o Bar�o do Amazonas n�o tinha salvo a independ�ncia das rep�blicas platinas mediante a vit�ria de Riachuelo, nome com que depois a C�mara Municipal crismou a Rua de Mata-cavalos. Vigorava, portanto, o nome tradicional da rua, que n�o queria dizer coisa nenhuma de jeito.

A casa que tinha o n�mero indicado no an�ncio era de bonita apar�ncia e indicava certa abastan�a nos haveres de quem l� morasse. Antes mesmo que Mendon�a batesse palmas no corredor, j� Miss Dollar, reconhecendo os p�trios lares, come�ava a pular de contente e a soltar uns sons alegres e guturais que, se houvesse entre os c�es literatura, deviam ser um hino de a��o de gra�as.

Veio um moleque saber quem estava; Mendon�a disse que vinha restituir a galga fugitiva. Expans�o do rosto do moleque, que correu a anunciar a boa nova. Miss Dollar, aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunha-se Mendon�a a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltou dizendo-lhe que subisse e entrasse para a sala.

Na sala n�o havia ningu�m. Algumas pessoas, que t�m salas elegantemente dispostas, costumam deixar tempo de

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