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Os dois nascimentos do homem: Escritos sobre terapia e educação na era da técnica

Por:   •  2/7/2018  •  5.409 Palavras (22 Páginas)  •  463 Visualizações

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uma realidade. E essa ideia se apresenta porque a liberdade tem sido totalmente posta em questão desde o século 19. Darwin aponta o homem como resultado de um processo evolutivo mais ou menos ao acaso. Marx denuncia que a liberdade de escolha é orientada e dirigida pela dinâmica do conflito de classes; o homem é comandado por forças muito maiores que ele, sem se dar conta disso. Freud diz que, embora o homem pense que está agindo livremente, ele é levado a agir sob o comando de pulsões do inconsciente que determinam sua experiência e sua conduta. Nietzsche também questiona a autonomia da consciência dos homens. Portanto, a noção de liberdade da consciência vem sendo praticamente destruída.

O século 20 aprimorou ainda mais a destruição. A história e a antropologia, e aí temos Lévi-Strauss, mostram o quanto o comportamento do homem é determinado historicamente. As neurociências também contribuem para o descrédito da liberdade, e os estudos da genética apontam na mesma direção. Assim, por exemplo, li uma notícia que anunciava a descoberta do gene responsável pelo traço que leva alguém a ser revolucionário ou conservador, ou seja, o predomínio do determinismo. Há anos, vi em um pequeno artigo de jornal a informação de que o estu- prador, na verdade, pratica seu ato porque é impelido a disseminar os seus genes da maneira mais eficiente possível. Esse artigo me deixou profundamente irritado, porque o estupro não é um fato biológico, é um fato humano, e não existe referência possível de aproximação entre a realidade do estupro vivido pelos humanos e os conceitos biológicos de disseminação de genes. Enfim, parece que os conhecimentos adquiridos no mundo atual nos dizem que a liberdade é ilusória.

Mas há outros pontos de vista a serem considerados. A tradição mítico-religiosa, de certa forma, introduz e sustenta o conceito de liberdade. O que é a liberdade dos homens na perspectiva mítico-religiosa? Penso que não é a liberdade de fazer alguma coisa, mas a de dizer “não”. É a rebeldia. Adão e Eva dizem “não” para a regra de não comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Édipo, quando sai do oráculo de Delfos e tem seu destino desvendado pela pitonisa, diz “não” diante do que se apresenta diante dele como um destino tão terrível. Parece, então, que a liberdade dos homens é a liberdade de oposição, de se rebelar. Mas essa liberdade também se mostra de outra maneira, como uma vontade de usufruir da liberdade dos deuses. Aí temos a figura de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses para dá-lo aos homens, dando a eles mais poder. Na modernidade, a tecnologia faz algo parecido, pois vai dando em momentos sucessivos um aumento do poder de dominação dos homens sobre a natureza e sobre os outros homens, por meio dos recursos que as várias técnicas disponibilizam. A tecnologia desenvolvida ao máximo dá para os homens a sensação de uma liberdade análoga à dos deuses.

Também podemos pensar a liberdade considerando ao mesmo tempo o porquê da dificuldade envolvida nesse tema e tendo como referência o pensamento de Hannah Arendt em Entre o passado e o futuro. A pensadora nos diz: “Em sua forma mais simples, a dificuldade pode ser resumida como a contradição entre nossa consciência e nossos princípios morais, que nos dizem que somos livres e, portanto, responsáveis, e a nossa experiência cotidiana no mundo externo, na qual nos orientamos em conformidade com o princípio de causalidade. Em todas as questões práticas, e em especial nas políticas, temos a liberdade humana como uma verdade evidente por si mesma, e é sobre essa suposição axiomática que as leis são estabelecidas nas comunidades humanas, que decisões são tomadas e que juízos são feitos.” () homem não é completamente determinado. Nossa convivência com os outros e com as coisas mostra que, em nosso jeito humano de ser, atuamos com certa liberdade de escolha. Essa ideia de liberdade pode não ser demonstrável, mas é necessária para a f undamentação da ética em geral e das ciências políticas.

Filósofos e teólogos têm concebido a liberdade como exercício do livre-arbítrio. Segundo esse ponto de vista, o homem é considerado como possuidor de uma vontade livre e, por isso, como um ser dotado da possibilidade de escolher, de decidir, independentemente de condicionamentos ou de uma causa determinante.

/Ao falar sobre liberdade, Sartre diz que o ato livre só é realmente livre quando é absurdo. Isso quer dizer que a ausência de toda determinação no estabelecimento de uma decisão humana significa necessariamente que essa decisão tem de ser absurda. Porque, se houver alguma razão em que a escolha se baseie, se houver uma razão para a decisão, ela já não é mais livre, ela é determinada pela razão que levou à escolha e não pelo exercício da absoluta liberdade do livre-arbítrio daquele que decide\

Mas deixemos um pouco de lado essas considerações feitas até agora sobre a liberdade e passemos a pensar, num plano on- tológico, o que é o ser livre do homem. Suspendamos também por um momento nossos conhecimentos a respeito do homem enquanto objeto da antropologia, da biologia, da sociologia ou da psicologia, e pensemos nele como Dasein, como ser-aí, cujo caráter peculiar consiste em, diferentemente de todos os outros entes, ser exatamente aquele cuja existência é ek-sistencia, o que literalmente significa ser-para-fora. O Dasein ek-siste. Ele é tocado pelo ser dos entes em geral, ele é a abertura, é o “aí” para a manifestação dos entes. Como ek-sistente, Dasein descerra o mundo como o horizonte a partir do qual tudo pode ser, a partir do qual ele perfaz o poder-ser que ele é, junto à coisas, com os outros. Seu modo de ser é ser-no-mundo e, como o poder-ser que ele é, ele se caracteriza por estar sempre vindo-a-ser. É do ser livre do Dasein que vamos tratar aqui.

A liberdade se identifica com o modo de ser do Dasein, com o modo de ser do homem. A liberdade é um dado, um dom, o maior dom; ser livre é a forma de ser do Dasein e, como tal, esse ser livre se manifesta em três dimensões: o ser aberto nas possibilidades, o ser fundado nas possibilidades, o ser lançado nas possibilidades.

O ser livre do Dasein é ser aberto em possibilidades. Porque 4 fala é própria do homem, porque ele é capaz de ter a linguagem, cie pode configurar não só o que é, mas também o que pode ser, O possível. E isso que pode ser é o ainda não, o não mais e também aquilo que é apenas virtualmente possível.

Seu ser livre é ser fundado nas possibilidades. Não só o Dasein é aberto nas possibilidades, mas ele também se enraiza nelas. Isso porque todo o sentido da ação humana se dá a partir do Objetivo ou da finalidade que a ação pretende alcançar, a partir de algo a que

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