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Espaços de solidão, morte e encantamento no conto O voo da madrugada de Sérgio Sant’Anna

Por:   •  2/5/2018  •  3.010 Palavras (13 Páginas)  •  349 Visualizações

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Podemos afirmar que, nessa parte do conto, o espaço desencadeia a ação, sendo responsável pela caracterização do espaço íntimo da personagem e de seus conflitos profundos. Depois de subir de volta ao quarto, ele confessa: “sentei-me na cama, e então, sim, pude compreender a verdadeira extensão do meu horror e fascínio, que me impeliam a querer partir imediatamente daquele lugar maldito”. (SANT’ANNA, 2003, p. 13) Também se delineia a presença da atmosfera social, entrevista inicialmente pela janela, e a reação da personagem ao se deslocar para o espaço externo e constatar que a sua realidade é inaceitável e, ao mesmo tempo, perturbadora para ele. Transparece o desprezo do eu narrador por coisas vulgares, chegando mesmo a demonstrar sua posição crítica em relação à estrutura da sociedade, quando menciona que a polícia fica a uma distância conveniente ignorando as flagrantes infrações à lei.

2 . Espaço de passagem

Já no aeroporto, a personagem encontrará um lugar de passagem revelador, inserido na narrativa como introdução ao espaço da experiência vital. Sua estrutura física é composta somente de “um grande galpão e uma pista de pouso.” Além do mais, era madrugada e, estando com fome, o narrador não localiza nada parecido com “uma lanchonete aberta”. Contudo, encontra uma “mulher negra, muito velha, com uma cafeteira presa ao ombro” (SANT’ANNA, 2003, p. 16) que lhe serviria um café fresco e saboroso, antecipando, por meio de um contato feminino, a paz que viria a seguir. Essa personagem feminina nada tem do habitualmente atraente numa mulher, não lhe restava nenhum dente na boca e tinha uma perna amputada, mas ela faz o protagonista rir pela primeira vez naquela noite, ao sentir-se tocado pelo “fio entre a vida e a morte” (SANT’ANNA, 2003, p.16) que sente na anciã. Aquele encontro rápido e profundo preparará, naquele lugar de passagem, o espaço do encontro com a plenitude, já introduzindo o detalhe de estranhamento: a anciã ainda sente a sua perna amputada.

3 . Espaço da fantasia essencial

O narrador confessa seu prazer em estar voando pelo fato de, assim, não se achar “propriamente em lugar algum”. SANT”ANNA, 2003, p. 16) Podemos, portanto, afirmar, que lhe falta o espaço do aconchego, fato que confessa ao afirmar: “minha vida era dura e insípida”. (SANT”ANNA, 2003, p. 17) Voando neste feliz lugar nenhum, nesse lugar fora de todos os lugares, nessa heterotopia, vem-lhe à mente o seu cotidiano errante de auditor, durante o qual

devia visitar os escritórios da empresa em várias cidades, verificar o volume das vendas e a contabilidade, almoçar com gerentes fastidiosos e aduladores, repreender alguns e congratular outros, sem entusiasmo. E, de noite, aqueles hotéis, que as modestas diárias pagas pela firma permitiam. Enfim, todos os aborrecimentos de uma vida errante e burocrática. (SANT’ANNA, 2003, p. 17)

Pior que isso: voltar para casa, significa voltar para o espaço em que foi traído e abandonado por uma mulher, sobre quem nem consegue adiantar mais detalhes, além dessa brevíssima, significativa e única analepse do conto. A enfadonha vida de auditor itinerante salva-o de um espaço privado cotidiano ainda pior. Novamente, o fio condutor dos espaços será uma figura feminina a impulsionar a trama.

O voo especial que leva os mortos de um acidente aéreo e seus familiares será o espaço de aconchego do narrador, pois ele pode se instalar sozinho e distante de todos, junto de uma janela e entregar-se à meditação. Mais ainda, cria-se um ambiente onde predominam as “sombras e os silêncios [que] têm delicadas correspondências. [... É noite e] os objetos irradiam suavemente as trevas. As palavras murmuram”. (BACHELARD, 2008, p. 181) Assim, ele pode “contemplar os astros no negrume”. Nesse ambiente, que aos poucos vai se tornando confortável, o protagonista narrador nos fornece a primeira descrição de sua própria pessoa: ele é um adulto de meia-idade, mas sente-se como um menino fantasiando. Outro fator de aconchego é “a companhia furtiva dos mortos [...] por sua paz inexpugnável.” Para coroar esse estado de paz, ele saboreia um “vinho de razoável qualidade.”. (SANT’ANNA, 2003, p. 17, 18) Toda essa paz o anima a se dirigir diretamente aos leitores, informando que, de tão bem que se sente, ele até se coloca à vontade para revelar seus pensamentos. Está, assim, preparado o espaço para o momento de clímax da trama.

Em grande paz, em plena madrugada, já se pressentindo a aurora, ele vê surgir sua figura feminina ideal, descrita pelos olhos de sentimento do narrador: sóbria, elegante, de modos recatados, sem idade, terna como uma menina. Ela vem como num sonho, sem precisar se apresentar. O entendimento pessoal é imediato, mesmo sendo ela uma desconhecida, sobre a qual o narrador tem muitas dúvidas, ela nunca o decepciona, sempre encanta, mesmo sem palavras, somente com gestos. Ao responder que não é uma das parentas dos mortos que o avião leva, fala uma única vez: “- Não, eu já estou entre eles“. O tempo que os dois partilham faz o narrador reconhecer que “jamais amara alguém tanto”, levando-o, finalmente, a adormecer num “aconchego perfeito.” (SANT’ANNA, 2003, p. 20, 21) Cria-se, assim, um espaço de utopia, um espaço “fundamentalmente irreal”, conforme Foucault.

Ao acordar, o narrador está sozinho e ele jamais conseguirá localizar sua companheira de viagem.

Em diálogo com o leitor, o narrador faz longas conjecturas sobre o acontecimento marcante que viveu: terá sido um sonho, o inconcebível, algo sobrenatural, um caso inexplicável, uma alucinação? Depois de longas deduções, o narrador não consegue optar por nenhuma das hipóteses longamente aventadas. Esse impasse é discutido por Todorov, que conclui haver duas soluções possíveis para esse fenômeno:

[...] ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e, nesse caso, as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. (TODOROV, 2010, p. 30)

O narrador não se decide sobre a natureza dessa “experiência mais marcante do que todas as outras em minha existência” (SANT’ANNA, 2003, p. 25), tornando possível afirmar que estamos diante de uma ocorrência descrita de acordo com os conceitos de literatura fantástica, pois, segundo Todorov (2010, p.31), o “fantástico ocorre nesta incerteza; [...] é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face

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