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A Cultura Histórica sobre a Conquista da América nas Canções do Festival Folclórico de Parintins (1998)

Por:   •  14/12/2018  •  8.232 Palavras (33 Páginas)  •  267 Visualizações

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Entendemos que as representações do passado da conquista da América inscritas nas canções do Boi Garantido constituem memórias históricas, recordações e lembranças de acontecimentos passados. Como atos de rememorização do passado, tais representações expressam uma determinada cultura histórica. Apoiados nas reflexões de Sánchez Marcos, entendemos o conceito de cultura histórica como uma “nueva manera de pensar y comprender la relación efectiva y afectiva que un grupo humano mantiene con el pasado” (2009: 1). Trata-se de uma categoria de estudo que pretende estudar os processos de elaboração/difusão da história em diferentes linguagens, para além da história acadêmica. Nesta perspectiva, trata-se de rastrear os estratos e processos de memória histórica social, prestando atenção aos agentes que as constroem e aos meios de sua difusão, às representações que divulga e às suas formas de recepção pela sociedade (SÁNCHEZ MARCOS, 2009).

A partir desta concepção de cultura história, buscamos entender as músicas/canções como artefatos culturais complexos que difundem representações sociais e detêm amplo poder comunicativo, reverberando temas e compondo “um repertório que permanece na memória dos brincantes e constitui referência para a criação de novas composições” (BRAGA, 2002: 85). Neste entendimento nos apoiamos também na teoria das Representações Sociais (JODELET, 2001) e nos estudos de Marcos Napolitano sobre a construção de uma história cultural da canção interessada em “mapear as camadas de sentido embutidas numa obra musical, bem como suas formas de inserção na sociedade e na história” (2005: 77).

Para realizarmos a presente análise, inicialmente, abordaremos as condições de produção e difusão das canções de boi-bumbá – também conhecidas como toadas de boi – por meio de uma revisão bibliográfica da literatura referente à história das brincadeiras de boi no brasil, conferindo atenção especial ao caso de Parintins. Realizada esta tarefa, apresentaremos a análise das canções A Conquista e Continente Perdido, discutindo os significados da conquista, bem como das representações da América e dos sujeitos históricos envolvidos nos episódios da Conquista.

Do folguedo ao festival

A complexidade e riqueza artística dos espetáculos de boi-bumbá em Parintins chamou atenção do mercado de bens culturais, do turismo e de esferas do poder público, mas não foram apenas esses atores sociais que se interessaram por essa manifestação cultural. Pesquisadores acadêmicos das áreas de Artes Visuais[3], Letras[4] e, especialmente, da antropologia[5] têm estudado temáticas relacionadas ao Festival Folclórico de Parintins. Será importante para a nossa reflexão, então, pontuarmos algumas das colocações desses estudiosos para ampliarmos nossas possibilidades interpretativas.

Em suas pesquisas, o antropólogo Sérgio Braga (2002) identifica a referência mais antiga encontrada a folguedos de boi no Brasil no relato de Frei Miguel do Sacramento Lopes sobre o Recife do ano de 1840. O mesmo pesquisador identificou também relatos que mencionam a presença desta manifestação, em formato muito semelhante, na região amazônica, em junho de 1850, nas cidades de Belém e Óbidos, na província do Pará. O autor enfatiza que estes relatos revelam o predomínio da participação da população negra nos folguedos. Já Maria Laura Cavalcanti (2000) fala dos folguedos realizados em Manaus no ano de 1859 e sugere sua difusão em diferentes regiões do país já na segunda metade do século XIX. Ela identificou um possível núcleo para o enredo das encenações realizadas pelos brincantes de boi. Segundo a autora,

(...) era uma vez um boi precioso, boi que um rico fazendeiro deu de presente a sua filha querida, entregando-o aos cuidados de um vaqueiro de confiança (Pai Francisco, representado como um negro). Pai Francisco, entretanto, mata o boi para satisfazer o desejo de sua mulher grávida (Mãe Catirina). O fazendeiro percebe a falta do boi e manda o vaqueiro chefe investigar o ocorrido. O crime é descoberto e, depois de alguns percalços, chamam-se os índios para ajudar na captura de Pai Francisco que, trazido à presença do fazendeiro é ameaçado de punição. Desesperado, ele tenta, e ao final consegue, ressuscitar o boi, com auxílio de personagens que variam – o médico e/ou o padre e/ou pajé. (CAVALCANTI, 2000: 1023).

Atenta às representações das relações étnico-raciais da sociedade brasileira na narrativa mítica dos folguedos de boi, Cavalcanti (2000) destaca a interação tensa e marcada por ambiguidades entre os personagens do núcleo do enredo e o tema da morte e ressurreição do boi como uma simbolização do estabelecimento de uma nova ordem social.

Embora os relatos citados remontem a presença do folguedo na Amazônia em meados do século XIX, em Parintins, as referências sobre o surgimento desta manifestação cultural, datam do início do século XX, ao ano de 1913, segundo depoimentos de parentes e amigos de seus primeiros brincantes[6] (BRAGA, 2002). Depoimentos sobre este passado, muitas vezes contraditórios, tornam a origem dos grupos Boi Garantido e Boi Caprichoso – que viriam, décadas depois, a figurar como protagonistas do Festival Folclórico de Parintins – alvo de polêmicas entre seus respectivos simpatizantes, que disputam a primazia da origem dos folguedos em Parintins (SILVA, 2007). Segundo Braga (2002), nos anos iniciais do folguedo, encontramos também referências a outros bois, mas que ao longo dos anos desapareceram como: o Galante, o Fita-Verde, o Campineiro e o Mina Ouro. Segundo alguns historiadores do festival, Boi Garantido teria sido fundado em 1920, e o Caprichoso, oficialmente fundado em 1913 (SAUNIER, 1989).

Nas décadas iniciais do folguedo em Parintins, grupos de simpatizantes de um determinado boi-bumbá saiam às ruas para “brincar de boi”, festejando e encenando o mito da morte e ressurreição do boi, e reunindo-se nos terreiros das casas de famílias mais ricas da cidade, iluminadas por fogueiras e lamparineiros (participantes responsáveis por carregar lamparinas) (BRAGA, 2002). Como pagamento da encenação, simbolizando a venda da língua do boi, o dono da casa dava uma quantia em dinheiro para os brincantes (SILVA, 2009).

Com a crescente popularidade e, concomitante, rivalidade que se desenvolvia entre os simpatizantes do Boi Garantido e do Boi Caprichoso, a Juventude Alegre Católica (JAC) da cidade passou a realizar o Festival Folclórico de Parintins a partir de 1966 na quadra paroquial da Igreja Nossa Senhora do Carmo (Braga, 2002). Nas décadas que se seguiram a brincadeira consagrou

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