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Como Ouvimos em Filosofia Clínica

Por:   •  25/3/2018  •  6.502 Palavras (27 Páginas)  •  257 Visualizações

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O falar e o ouvir dessa relação, ancoradas no leque de conhecimentos filosóficos do terapeuta, exigem do filósofo antes, e sobretudo, uma grande sensibilidade humana, forte mas versátil, disciplinada porém afetuosa, capaz de perceber miríades de diferentes e intraconjugadas formas de linguagens semióticas com que o partilhante se utiliza para se comunicar. Na intencionalidade do discurso entre dois, tudo que se manifesta diante do filósofo parece ser “fala”. Gestos, palavras, dores de cabeça, insônia, roupas, cheiro, coceiras, respiração e infinitamente outros. Tudo pode estar implicado e partícipe na vivência do discurso, na qualidade de pronunciamento de sentenças, exigindo do filósofo o deciframento dos jogos de linguagem utilizados pelo outro. Mesmo o silêncio pode ser interpretado a partir da sintaxe de articulações exercidas pelo partilhante em sua gramática subjetiva. Isto é, sua lógica individual própria, enquanto sujeito reconhecido na sua plena singularidade, na qual os lapsos de raciocínio ou de memória, as recusas, mentiras ou contradições, os delírios, tiques e os matizes de humor, como quaisquer outros elementos de uma conversação, podem expor relações de concordância intrínseca, de subordinação, de ordem ou desordem, de modo a revelar ao filósofo clínico, posto em prática o seu método, a estrutura de pensamento do partilhante. Conhecimento necessário para futuras devoluções e aconselhamentos. A trama conceitual da sua malha intelectiva, entrelaçada pelas circunstâncias históricas da sua vida e parcialmente descortinadas pela investigação filosófica, dá ao filósofo clínico um conhecimento empírico e epistêmico do sentido subjetivo de realidade com que o outro construiu a sua visão de mundo. Se o terapeuta for bem sucedido em seu trabalho intelectual, será comum ouvir do seu partilhante qualquer expressão semelhante a esta: “você me compreendeu bem, tal como eu gostaria de ser compreendido”. Compreender não significa concordar. Estabelecem-se o diálogo e as transformações. Quase sempre, a sensação ética de confiança naquele a quem se desnuda a própria intimidade é gratificante o suficiente para o partilhante continuar a terapia, demonstrada a certeza de que o filósofo clínico sabe ouvi-lo.

Imprescindível jamais esquecer que o que é dito pelo partilhante está sempre implicado com a qualidade receptiva da escuta do terapeuta, com os seus limites cognitivos, preferências de interpretação e valores morais próprios. Razão pela qual, sabe o bom filósofo clínico que os vínculos de aproximação exigem muito mais do que um respeito cordial. Com as experiências da prática clínica, a continuidade dos estudos filosóficos, o autoconhecimento adquirido também na condição de partilhante em terapias de supervisão entre colegas, exige-se do filósofo clínico uma disposição firme de caráter e uma dedicação penhorada de alma. De modo que o processo ativo da consciência de escutar o outro começa e se aperfeiçoa no filósofo clínico muito antes do seu primeiro encontro com o partilhante no consultório. Como haveria de ser diferente para aquele que escolheu essa profissão existencial? Enfrenta os riscos de confusão no julgamento diante dos perigos da vaidade, se apoiada nas semelhanças com o outro. Afronta aversões contra o partilhante, em razão de o filósofo trair a si mesmo, transgredindo os próprios valores pessoais atendendo aqueles que seu coração pedia afastamento. Fabrica com exaustão a mágica de tirar forças íntimas para ajudar, quando a própria vida está minada de esperanças. Situações frequentes no dia a dia de um filósofo clínico. Sem licenças, faz-se necessário proteger o partilhante das carências do filósofo, já que ninguém está isento de sofrimentos e fragilidades. Se errar é inevitável, o filósofo clínico, favorecido pela memória dos seus erros e pela genuína boa vontade em servir, acumula sobre si a competência da humildade (que é paradoxalmente descobrir-se não humilde), essa riqueza vital de nunca se julgar melhor do que aqueles que são julgados. Afinal, o outro é tão mais perfeito quanto menos imperfeito for o meu julgamento sobre ele. Sabe o filósofo clínico, lucidamente, que o ato de escutar implica em interpretar, em uma relação de alteridade na qual tanto o terapeuta quanto seu partilhante estão em terapia juntos.

Dizer que não há filosofia clínica sem clínica é, portanto, essencial para a compreensão filosófica dessa escuta sui generis. “Filosofia clínica” é um conceito inteiro, cujo termo “clínica” não pode ser usado de modo geral como adjetivo, isto é, com um sentido simplesmente agregado à filosofia acadêmica, sem em nada mudar a natureza ou a história desta. Simples termo de acomodação, com valor instrumental. Clínica não pode ser aqui entendida apenas como uma metodologia psicoterápica aplicada, uma técnica de ajuda pessoal com base em sistemas filosóficos pressupostos, tais como a fenomenologia – ainda que isso também seja verdade. A atitude filosófico-clínica do cuidar do outro não é independente do saber cuidar do outro, pois a essência mesma do conhecimento ético é a própria vivência ética. O pensamento de Lúcio Packter, um filósofo da alteridade, é gravemente marcado pelo fato de ele receber seu impulso e direção mais dos problemas existenciais do sofrimento humano, colhidos em sua prática de atendimentos em hospitais e consultórios, do que das filosofias e dos pensadores.

Na história do pensamento, segundo minha perspectiva, a filosofia clínica se afirma enquanto uma filosofia da ética, na qual a vida se confunde com a filosofia, e esta é constituída por um ato que parte do núcleo mais íntimo do filósofo clínico em direção àquele que o procura em busca de orientação existencial. Daí que filosofar clinicamente é amar o ser do outro, não como “ser-objeto” do saber, mas enquanto “ser-ato” do conhecimento, ser de alteridade viva e latente. Sem a alteridade dialética da práxis na clínica (na qual a teoria refaz a prática e esta reformula o pensamento) toda ciência que elabore juízo ou teoria diagnóstica da psique humana, apresentando verdades estabelecidas sem verificação singular, prejulgando a subjetividade concreta do partilhante, é conhecimento estéril e vazio de significados reais. O conhecimento é relativo e toda objetividade é estabelecida por convenções histórica e politicamente determinadas. Nem por isso as ciências da psique podem ser descartadas, são parâmetros importantes de aproximação do real. Generalizar os fenômenos observados em forma de lei científica, reconhecendo neles padrões lógicos ou estatísticos de repetição e previsibilidade consegue reunir em uma classe ou em um conceito um conjunto de

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