A dimensão histórico-social do Direito: Carl Schmitt e a hermenêutica da exceção e da decisão
Por: kamys17 • 19/12/2018 • 3.491 Palavras (14 Páginas) • 304 Visualizações
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A regra de reconhecimento não só estipula a forma que todas as normas jurídicas devem assumir para serem consideradas normas válidas do sistema jurídico, mas também atribui competência e/ou autoridade a certos sujeitos para que ditem e apliquem as normas jurídicas fixando, com base nos direitos fundamentais dos cidadãos e na estrutura política do Estado, os limites de atuação dos Poderes Públicos. Decisivamente, é a presença da regra de reconhecimento que articula a ideias de sistema jurídico, ou seja, é ela que distingue o Direito de outros sistemas normativos, como a moral, as regras de trato social e as regras de jogo, dado que estes sistemas não dispõem, em seu interior, de uma regra última que identifique toda e cada uma das normas existentes estabelecendo a sua pertinência e validez.
Na teoria positivista sustenta que a eficácia das normas é condição necessária para a existência dos ordenamentos jurídicos, esta asseveração carece de claridade conceitual porquanto afirma de forma simultânea a existência e a ineficácia de um mesmo sistema de normas e, daí a necessidade de conhecer o papel que desempenha o conceito de eficácia na teoria jurídica de Hart. Na construção hartiana, uma norma somente pertencerá a um ordenamento jurídico se a regra de reconhecimento a identificar como tal, outorgando-lhe validez. Este é o denominado critério de filiação que pode ser enunciado da seguinte forma: uma norma pertence a um ordenamento jurídico S, se, e apenas se, satisfaz algum dos critérios formulados na regra de reconhecimento de S. Para Hart, uma norma existe de fato, quando a conduta por ela estabelecida é geralmente obedecida, mas também é óbvio que não existe uma conexão necessária entre a validez de uma regra particular e a sua eficácia.
Hart adverte que se deve distinguir entre a ineficácia de uma norma que pode ou não afetar a sua validez e uma inobservância geral das normas do ordenamento jurídico. Logo, os enunciados de eficácia de Hart podem ser expressados da seguinte forma: enquanto o enunciado “Existe a norma N” não implica o enunciado “A norma N é eficaz”, o enunciado “Existe o ordenamento jurídico OJ” implica o enunciado “O ordenamento jurídico OJ é eficaz”. Portanto, da regra de reconhecimento não se predica validez, e sim existência, entendida aqui no sentido de existência fática. E para que dita regra exista é: (a) suficiente que ela seja habitualmente obedecida pelos cidadãos; e (b) necessariamente aplicada pelas Law-enforcing agencies do ordenamento jurídico. A obediência dos sujeitos, sejam destinatários ou operadores jurídicos, é, em última instância, a única dimensão da qual se predica a existência de um sistema jurídico. Neste sentido, estará descartada a possibilidade de incluir como outra condição para a validez de toda e qualquer norma jurídica a correção moral do seu conteúdo.
Com razão Ihering denominou as relações entre o Direito e a moral como “o Cabo das tempestades da ciência jurídica”. Não há dúvida de que esta é uma das temáticas mais complexas e centrais da filosofia moral e jurídica. É só fazer algumas perguntas sobre um tema controvertido como: a eutanásia é uma questão moral, jurídica ou de mera consciência? E pode o Estado, por meio do Direito, intervir no direito individual de cada ser humano de querer viver ou morrer? Para logo saber que qualquer tentativa de respostas derivaria em uma discussão interminável e em profundos desacordos jurídicos e sociais. Hart enfrentou esta espinhosa temática e esta última seção pretende explicar a postura por ele adotada. Neste particular, sua teoria é enriquecedora e aceitável, ainda que em alguns pontos, como quando aborda o conteúdo mínimo do Direito natural, resulte ser precária.
Para compreender seu ponto de vista nada melhor que partir do núcleo de seu modelo positivista e das três teses básicas que defende, a saber: a tese das fontes sociais do Direito, a tese da separação conceitual do Direito e da moralidade e a tese da discricionariedade judicial. Podem-se explicar essas teses da seguinte maneira: a primeira tese mantém que a existência do Direito é definida pelas práticas sociais complexas (em outras palavras, pelo conjunto de ações dos membros de uma dada sociedade) que estipulam quais são as fontes últimas (os testes últimos de validez) de identificação das normas jurídicas que configuram o Direito. A segunda tese argui que as conexões entre o Direito e a moral são contingentes, ou seja, não são necessárias nem lógica, nem conceitualmente. A terceira tese, esta fundada na concepção hartiana acerca da textura aberta da linguagem e, em particular, da linguagem jurídica que, em algumas ocasiões, estabelece normas jurídicas que contêm termos genéricos, vagos, controvertidos. Esta asserção leva a outra importante afirmação: a de que o Direito é parcialmente indeterminado ou incompleto e que, portanto, quando um juiz se depara com uma norma que contenha termos potencialmente imprecisos, atuará discricionariamente.
De acordo com Hart, a indeterminação é uma característica de todo intento de guiar a conduta humana mediante normas gerais formuladas linguisticamente e a ela não escapa o Direito. Consequentemente, a teoria do Direito não pode ser contemplada como se estivesse imersa entre duas concepções igualmente inaceitáveis do Direito: entre o realismo e o ceticismo perante as normas, tal como a teoria jurídica estadunidense assediada por dois extremos “o Pesadelo e o Nobre Sonho, ou seja, o ponto de vista de que os juízes sempre criam e nunca encontram o Direito que impõem às partes no processo e, o ponto de vista oposto, segundo o qual os juízes nunca criam Direito. Como outros pesadelos e outros sonhos, os dois são, em minha opinião, ilusões, ainda que tenham muitas coisas a ensinar aos juristas em suas horas de Vigia. A verdade, talvez trivial, é que às vezes os juízes fazem uma coisa e outras vezes outra. Que fazem, quando, e como fazem, não é obviamente uma questão indiferente, mas sim de grande importância.
Para Hart, sua teoria é uma interpretação do Direito não que apresenta excessivos problemas, pois está fundamentada na obviedade da linguagem jurídica encontrada nas normas, convenções e práticas que constituem a linguagem natural ou comum de uma sociedade. Mas também é correto afirmar que, em alguns momentos, surgirão dúvidas na aplicação do Direito em razão da textura aberta das expressões que utiliza e, nestes casos, é inevitável que em algumas decisões, a fim de dar uma resposta concreta a um caso determinado, os juízes atuem com discricionariedade.
- Carl Schmitt e a hermenêutica da exceção
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