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Rubem Alves Filosofia da Ciência

Por:   •  22/5/2018  •  7.443 Palavras (30 Páginas)  •  686 Visualizações

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B.1 Antes de mais nada é necessário acabar com o mito de que o cientista é uma pessoa que pensa melhor do que as outras. O fato de uma pessoa ser muito boa para jogar xadrez não significa que ela seja mais inteligente do que os não-jogadores. Você pode ser um especialista em resolver quebra-cabeças. Isto não o torna mais capacitado na arte de pensar. Tocar piano (como tocar qualquer instrumento) é extremamente complicado. O pianista tem de dominar uma série de técnicas distintas – oitavas, sextas, terças, trinados, legatos, staccatos – e coordená-las, para que a execução ocorra de forma integrada e equilibrada. Imagine um pianista que resolva especializar-se (note bem esta palavra, um dos semideuses, mitos, ídolos da ciência!) na técnica dos trinados apenas. O que vai acontecer é que ele será capaz de fazer trinados como ninguém – só que ele não será capaz de executar nenhuma música. Cientistas são como pianistas que resolveram especializar-se numa técnica só. Imagine as várias divisões da ciência – física, química, biologia, psicologia, sociologia – como técnicas especializadas. No início pensava-se que tais especializações produziriam, miraculosamente, uma sinfonia. Isto não ocorreu. O que ocorre, freqüentemente, é que cada músico é surdo para o que os outros estão tocando. Físicos não entendem os sociólogos, que não sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não compreendem a linguagem da economia, e assim por diante.

A especialização pode transformar-se numa perigosa fraqueza. Um animal que só desenvolvesse e especializasse os olhos se tornaria um gênio no mundo das cores e das formas, mas se tornaria incapaz de perceber o mundo dos sons e dos odores. E isto pode ser fatal para a sobrevivência.

O que eu desejo que você entenda é o seguinte: a ciência é uma especialização, um refinamento de potenciais comuns a todos. Quem usa um telescópio ou um microscópio vê coisas que não poderiam ser vistas a olho nu. Mas eles nada mais são que extensões do olho. Não são órgãos novos. São melhoramentos na capacidade de ver, comum a quase todas as pessoas. Um instrumento que fosse a melhoria de um sentido que não temos seria totalmente inútil, da mesma forma como telescópios e microscópios são inúteis para cegos, e pianos e violinos são inúteis para surdos.

A ciência não é um órgão novo de conhecimento. A ciência é a hipertrofia de capacidades que todos têm. Isto pode ser bom, mas pode ser muito perigoso. Quanto maior a visão em profundidade, menor a visão em extensão. A tendência da especialização é conhecer cada vez mais de cada vez menos.

C.1 A aprendizagem da ciência é um processo de desenvolvimento progressivo do senso comum. Só podemos ensinar e aprender partindo do senso comum de que o aprendiz dispõe.

A aprendizagem consiste na manutenção e modificação de capacidades ou habilidades já possuídas pelo aprendiz. Por exemplo, na ocasião em que uma pessoa que está aprendendo a jogar tênis tem a força física para segurar a raquete, ela já desenvolveu a coordenação inata dos olhos com a mão, a ponto de ser capaz de bater na bola com a raquete. Na verdade, com a prática ela aprende a bater melhor na bola, . . Mas bater na bola com a raquete não é parte do aprendizado do jogo de tênis. Trata-se, ao contrário, de uma habilidade que o jogador possui antes de sua primeira lição e que é modificada na medida em que ela aprende o jogo. É o refinamento de uma habilidade já possuída pela pessoa. (David A. Dushki (org.). Psychology Today – An Introduction. p. 65).

C.2 O que é senso comum?

Esta expressão não foi inventada pelas pessoas de senso comum. Creio que elas nunca se preocuparam em se definir. Um negro, em sua pátria de origem, não se definiria como pessoa “de cor”. Evidentemente. Esta expressão foi criada para os negros pelos brancos. Da mesma forma a expressão “senso comum” foi criada por pessoas que se julgam acima do senso comum, como uma forma de se diferenciarem das pessoas que, segundo seu critério, são intelectualmente inferiores. Quando um cientista se refere ao senso comum, ele está, obviamente, pensando nas pessoas que não passaram por um treinamento científico. Vamos pensar sobre uma destas pessoas.

C.3 Ela é uma dona-de-casa. Pega o dinheiro e vai à feira. Não se formou em coisa alguma. Quando tem de preencher formulários, diante da informação “profissão” ela coloca “prendas domésticas” ou “do lar”. Uma pessoa comum como milhares de outras. Vamos pensar em como ela funciona, lá na feira, de barraca em barraca. Seu senso comum trabalha com problemas econômicos: como adequar os recursos de que dispõe, em dinheiro, às necessidades de sua família, em comida. E para isto ela tem de processar uma série de informações. Os alimentos oferecidos são classificados em indispensáveis, desejáveis e supérfluos. Os preços são comparados. A estação dos produtos é verificada: produtos fora de estação são mais caros. Seu senso econômico, por sua vez, está acoplado a outras ciências. Ciências humanas, por exemplo. Ela sabe que alimentos não são apenas alimentos. Sem nunca haver lido Veblen ou Lévi-Strauss, ela sabe do valor simbólico dos alimentos. Uma refeição é uma dádiva da dona-de-casa, um presente. Com a refeição ela diz algo. Oferecer chouriço para um marido de religião adventista, ou feijoada para uma sogra que tem úlceras, é romper claramente com uma política de coexistência pacífica. A escolha de alimentos, assim, não é regulada apenas por fatores econômicos, mas por fatores simbólicos, sociais e políticos. Além disto, a economia e a política devem fazer lugar para o estético: o gostoso, o cheiroso, o bonito. E para o dietético. Assim, ela ajunta o bom para comprar, com o bom para dar, com o bom para ver, cheirar e comer, com o bom para viver. É senso comum? É. A dona-de-casa não trabalha com aqueles instrumentos que a ciência definiu como científicos. É comportamento ingênuo, simplista, pouco inteligente? De forma alguma. Sem o saber, ela se comporta como uma pianista, em oposição ao especialista em trinados. É provável que uma mulher formada em dietética, e em decorrência de sua (de)formação, em breve se veja frente a problemas na casa, em virtude de sua ignorância do caráter simbólico e político da comida. Especialista em trinados.

C.4 O que é o senso comum?

Prefiro não definir. Talvez simplesmente dizer que senso comum é aquilo que não é ciência e isto inclui todas as receitas para o dia-a-dia, bem como os ideais e esperanças que constituem a capa do livro de receitas.

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