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TRANSTORNO MENTAL E CRIMINALIDADE NA ADOLESCÊNCIA: NOTAS PARA UMA ANÁLISE CRÍTICA DA PATOLOGIZAÇÃO DO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL

Por:   •  15/11/2017  •  26.891 Palavras (108 Páginas)  •  723 Visualizações

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Abordamos em outros trabalhos, com maiores detalhes, os sinais dessa psiquiatrização (Vicentin, 2005a, 2005b, 2006), aqui apenas sintetizados:

a) A emergência de propostas de alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (LGL\1990\37) centradas no argumento do transtorno mental e da periculosidade (vide PL 2.588 do Deputado Federal Vicente Cascione, nov. 2003).

b) O crescente encaminhamento de adolescentes cumprindo medida socioeducativa para perícias psiquiátricas visando aferição do grau de periculosidade e diagnóstico de transtorno de personalidade anti-social.

c) A crescente internação psiquiátrica de adolescentes por mandado judicial, já verificada nos dois maiores hospitais psiquiátricos para adolescentes nos municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo, caracterizada: pela compulsoriedade, pela estipulação de prazos para a internação ou pela sua subordinação aos critérios jurídicos, por tempo médio de internação superior aos dos demais internos admitidos por outros procedimentos e pela acentuada presença de quadros relativos à distúrbios de conduta (portanto, não psicóticos) (Bentes, 1999; Joia, 2006). 5

2. Uma genealogia dessa construção: o caso da associação da criminalidade e do transtorno de personalidade anti-social em São Paulo

Um esclarecimento importante para entendermos a situação que será aqui analisada foi a presença de um contingente de jovens com diagnósticos diversos de transtorno mental e sem o devido tratamento especializado, internados na então Febem-SP, 6 que levou o Ministério Público e o Poder Judiciário do Departamento de Execução (das medidas socioeducativas) da Infância e Juventude (Deij) de São Paulo a instaurarem, respectivamente, processo (1999) e sindicância (2002) para apurar irregularidades no sistema de atendimento de adolescentes portadores de transtorno mental, convocando diversas Secretarias do Estado e do município para encaminhar providências e formular políticas nesse âmbito.

Nesses procedimentos, pudemos observar 7 que predominou, num primeiro tempo (1999-2001), uma preocupação com questões relativas à assistência aos transtornos mentais mais clássicos: droga-dependência, surtos psicóticos e deficiências mentais para dar lugar, num segundo tempo (2002-2004), aos casos de transtornos de personalidade anti-social (TPAS) e às perícias para avaliação da periculosidade, levando os adolescentes para outros contextos diagnósticos ou de tratamento, como o Instituto de Medicina Social e Criminologia, Ambulatório de Transtornos de Personalidade (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas-SP) e Sociedade de Rorschach. Nesse período de dois anos, em torno de cem adolescentes internos na Febem-SP serão encaminhados para essas perícias, em sua grande maioria com a hipótese de transtorno de personalidade anti-social. A noção de transtorno de personalidade ganhará, então, centralidade na tematização das questões de saúde mental, configurando um novo campo problemático (Vicentin, 2005b, 2007).

São muitas as linhas de força que derivaram nessa centralidade que culminara com a construção de uma Unidade Experimental de Saúde, em 2006, pela Secretaria Estadual da Saúde destinada a oferecer, durante o cumprimento de medida socioeducativa de internação, atendimento diferenciado na área de saúde mental. Acompanhemos alguns elementos sobre como se deu aqui em São Paulo essa inflexão na direção de uma psicocriminologia na relação com o adolescente em conflito com a lei, por meio do que dizem seus diferentes atores (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria e Equipes Técnicas da Febem-SP e do Deij).

Uma argumentação reiterada, especialmente do lado do Poder Judiciário e do Ministério Público, coloca em questão a relação entre gravidade do ato infracional/reincidência e a prevalência de transtorno mental bem como a percepção de que os atos infracionais têm tido uma fenomenologia mais agravada:

"Não fazemos avaliações [psi] indiscriminadamente; apenas nos casos mais graves: evento de morte, violência sexual, reincidência múltipla. Acho importante, nesses casos, não ter apenas a visão dos técnicos da Febem, mas ter outra opinião, de quem está mais de fora" (Juiz, jun. 2005). 8

"Não podemos reduzir essa questão à idéia de que os juízes 'cismaram em pedir avaliações psiquiátricas'. Há casos mais graves; há 10 anos, a expressão da criminalidade era de outra natureza. Começamos a perceber essas diferenças no perfil da criminalidade: a gravidade dos casos, a reiteração (...) Esse é um processo social relacionado às mutações do campo social: como é o caso do consumo, da globalização. (...) Os técnicos da Febem também estão apontando essas diferenças: antes a participação das meninas na criminalidade era por intermédio dos namorados; hoje elas estão chefiando o tráfico" (Juiz, jun. 2005, grifos meus).

"Latrocínio é grave e exige cautelas para medida mais branda: crimes dessa natureza, considerados como de extrema gravidade, revelam periculosidade e total insensibilidade de quem os pratica. Infelizmente eles têm sido cada vez mais frequentes, gerando pânico e insossego. (...) Não pode este juízo promover a desinternação do paciente com base apenas nos relatórios técnicos apresentados pela Febem (...) Apenas pelo fato do ato infracional praticado ser hediondo (...) já é suficiente para justificar a realização de exame aprofundado das causas do envolvimento do jovem com a prática de atos anti-sociais. Estudos feitos por especialistas e a prática vivenciada por este julgador e demais colegas desse Departamento revelaram que o envolvimento na prática de crimes violentos é um dos maiores indícios da existência de psicopatia ou sociopatia" (Sentença judicial, processo A. B. S., mar. 2003, grifos meus).

"Depois apareceu o tema do Transtorno de Personalidade que não é doença, mas está no CID. Demoramos a entender essa especificidade. Começamos a perceber a existência desse outro grupo que por mais que tivesse intervenções técnicas, acompanhamento psicológico, ou que estivesse em unidades com boa intervenção socioeducativa, você pedia avaliações para diferentes equipes e elas apontavam características estranhas no tocante à personalidade. Ou casos em que os técnicos diziam: ele não pode conviver em sociedade" (Juiz, jun. 2005, grifo meu).

"Mesmo num sistema perverso, de opressão [refere-se ao então contexto Febem-SP], destacavam-se jovens - não meramente por aspectos de liderança - que tinham indicativo de comportamentos

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