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Memórias sobre uma formação voltada para um cuidado promotor e potencializador de vidas.

Por:   •  7/10/2018  •  7.590 Palavras (31 Páginas)  •  286 Visualizações

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é visto como um ser total”. Mas o que, de fato, isso significava?

Era evidente que se tratava de um serviço de saúde, afinal na cidade, o Pronto Socorro também era pintado de verde e branco, e era possível flagrar trabalhadores uniformizados e, algumas vezes, ambulâncias adentrando ao espaço. Mas o que mais me intrigava era não ver as pessoas, os pacientes, indo e vindo como em outros espaços de tratamento. Além disso, havia dias que nada acontecia ao alcance dos meus olhos, ninguém entrava, ninguém saia e eu pensava.

Não demorou muito para eu descobrir que se tratava de um Hospital Psiquiátrico, ou como diziam os moradores do entorno “o lugar dos loucos”, o Sanatório. Histórias eram contadas sobre esse lugar e as narrativas estavam, quase sempre, carregadas de medo ou piedade, ironia ou dor. Descreviam indigentes, hediondos, sem consciência e violentos. Essas memorias produziram em mim a caricatura do homem selvagem, incapaz de cuidar de si. O que me levou a pensar que algumas pessoas nunca saíram ou sairiam de lá, e que, talvez, isso fosse melhor para elas e para nós.

Aos poucos fui percebendo que embora o tempo passasse, ali, entre os muros do manicômio, pouco acontecia, ou, pelo menos assim eu acreditava. Foi então, que surgiu um questionamento que me acompanharia por anos, e seria foco de minhas atenções até hoje. Como um lugar excludente é capaz de enxergar o homem em sua totalidade? Existiria algo a ser feito para que essas pessoas pudessem ter um destino diferente?

Esse muro e as histórias que ocorriam por de trás dele estiveram ativos em mim até 2000, quando conclui o ensino médio, e a vista da muralha verde e branca, que nos separava da loucura, saiu temporariamente de meu campo de visão diário. E, embora eu estivesse alienada das discussões em âmbito nacional e internacional nesta época, me encontrava prestes a despertar para algo que já incendiava os palcos de debate da Saúde e dos Direitos Humanos em vários países do mundo, em especial a França e a Itália.

Há mais de duas décadas profissionais, usuário e familiares de saúde mental já discutiam e pensavam alternativas ao hospital psiquiátrico. Já havia sido criado o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) em 1978, já tinha acontecido a I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM) em 1987, com o lema “Por Uma Sociedade Sem Manicômios”. A Declaração de Caracas já estava redigida e sendo adotada pela Organização Mundial de Saúde em 1990, redirecionando a assistência psiquiátrica para um modelo de saúde de base comunitário (TENÓRIO, 2002; BRASIL, 2005; AMARANTE, 2013)

Algumas Portarias Ministeriais que viabilizavam o atendimento e a existência desses usuários nos espaços comunitários já tinham sido lançadas, e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) começaram a fazer parte da oferta de tratamento em alguns locais do Brasil. E, em menos de seis meses o povo brasileiro iria aprovar a lei da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216, propondo uma transformação de práticas, saberes e valores socioculturais em relação à loucura e sua forma de tratamento (BRASIL, 2005; AMARANTE, 2010).

De certa forma, embora não fizesse ideia do contexto político e ideológico desse enigma que eu encontrara, muito havia sido feito no campo da saúde mental e muito mais necessitava avançar para um cuidado digno às pessoas sofrimento psíquico, me levando a recordar que:

“Nós surgimos, de certo modo, a meio de uma conversa que já começou e na qual tentamos orientar-nos para fornece-lhe o nosso contributo (RICOEUR, 1991, p.58).”

Não há dúvida que essas questões influenciaram sobremaneira a minha escolha profissional. Ao mesmo tempo em que entrar em contato com a realidade dura das narrativas populares sobre a loucura e o adoecimento humano provocava em mim grande incômodo, despertou-me, também, uma vontade de seguir uma profissão que cuidasse do ser humano, especialmente na saúde mental.

E assim, sem ter, ainda, muito claro, estava eu a meio passo de encontrar a estrada que me levaria a tecer meu caminho profissional, construir meus princípios e ideologias para o encontro com o outro.

2. Sobre meu percurso formativo e a construção de um cuidado promotor e potencializador de vidas.

Ingressei na Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia (FEO) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) em 2004, aos 22 anos de idade, após dois anos de estudos pré-vestibular. Estudar em uma universidade pública era a única forma de obter curso superior, tendo em vista, a limitação econômica de minha família.

Durante a graduação, residi na “Casa do Estudante” e dispus de auxílio alimentação e transporte, mantidos pela universidade. Nesse período, tive a oportunidade de interagir com pessoas de histórias e culturas diferentes e isso foi fundamental para desenvolver habilidades como o respeito e a tolerância à diversidade de ser. Tive a oportunidade de compartilhar valores e conhecimentos com pessoas de diferentes cursos e pude compreender que a coletividade pode nos fortalecer se soubermos compreender onde queremos chegar.

O curso de Enfermagem era diurno e incluía aulas de licenciatura à noite, em alguns semestres, o que exigiu dedicação exclusiva durante toda a graduação, visto que, também, cursei 2 anos de língua inglesa e 3 semestres de cultura e língua italiana, através de projetos de extensão da UFPel. Além disso, realizei vários estágios complementares e participei de atividades de pesquisa e extensão, nas quais atuei como bolsista. Irei abordar melhor alguns deles ao longo dessa narrativa.

No primeiro semestre da universidade já me aproximei do grupo de discussão de Enfermagem Psiquiátrica, conduzido pelo Prof. Claudio Mairan Brazil, através do qual iniciei minha atuação no projeto de extensão Atividades Voluntárias em Enfermagem Psiquiátrica, que acontecia em um Hospital Psiquiátrico da Cidade. Permaneci neste projeto até junho de 2005, perfazendo 130 horas. E, durante esse período, descobri que muitas coisas aconteciam por de trás da muralha verde e branca, em uma intensidade que eu, sequer, podia imaginar quando iniciei meus pensamentos sobre ela.

Contudo, essa experiência me permitiu entender melhor a imagem da loucura construída pelos relatos populares. Deparei-me com uma realidade dura e singular, conheci pessoas e vidas enclausuradas, muitas vezes, pela fragilidade dos laços sociais, e que, por isso, estavam fadados a permanecer nesse lugar. Inúmeras pessoas com destinos traçado pela ausência de uma rede de sustentação que possibilitasse sua forma singular de existir em liberdade.

Testemunhei cenas de violação de direitos humanos, agressão e negligência aos internos, que

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