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O Tempo na narrativa platônica da criação: o Timeu

Por:   •  26/11/2018  •  3.465 Palavras (14 Páginas)  •  240 Visualizações

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A composição surpreende pela heterogeneidade dos elementos que a constituem. Começando pela oposição onto-epistemológica do ser/razão, ao devir/opinião/sensação (27d-28a), passa ao esboço de um argumento sincrético[9] (27d-29b), que remata com um postulado teológico-ético (29d-e), rico de consequências físicas e cosmológicas, tudo isto num discurso colorido por um forte matiz religioso.

Mas devemos ficar atentos à diferença de contextos culturais. Alheio à disciplina definida por uma religião revelada, o filósofo tenta argumentar, em terrenos em que a argumentação não proporciona segurança[10]. A narrativa das origens do cosmo integra noções como as de um “criador bom”, “isento de erro”, de uma “obra bela”, de “alma”, num raciocínio que explica como a inteligência traz o “todo visível”..., “que se movia discordante e desordenadamente”, da “desordem” para “ordem” (30a; vide 53a-b), para um leitor actual, situadas no domínio da religião.

A intromissão da argumentação na descrição da ordem transcendente provoca, porém, uma cadeia de problemas. Não se percebe como podia “existir” algo, antes de o cosmo ser criado, consequentemente, em que teria consistido a criação. É certo que ambas as perguntas são indirectamente respondidas pela declaração de a criação começar pela da alma do cosmo (34b-c). Mas então, que poderá o Criador ser, senão outra alma? E, se é, por quem e como foi criado? Como então, antes dele, já havia o visível?

Os problemas, motivados pela estreita associação da criação à existência – normal para um leitor actual –, regridem no infinito, sem que a cadeia de absurdos possa ser detida[11]. Para a evitarmos haverá que esclarecer previamente o sentido a atribuir aos termos envolvidos: “criação”, “visível”, “ordem”, “movimento desordenado” e, sobretudo, “alma”.

A alma é criada para comandar a constituição do cosmo e dotada de Razão para melhor assegurar a realização da tarefa que lhe é confiada. Ora, se foi criada para executar uma finalidade, é porque, em si e por si, é capaz de a eleger como sua. Portanto, da necessidade de a criar não se segue que nada existisse antes dela, mas apenas que, além do Criador, o que havia – designado como “o visível” –, caracterizado pelo “movimento desordenado”, era destituído de finalidade.

A criação da alma trará então a ordem ao visível. Mas o que poderá significar, ou implicar, “ordem”, neste contexto? A resposta óbvia para um leitor actual – “regularidade” – poderá não ser bastante, dado o sincretismo da narrativa.

Ora, a continuação do texto deixa sobremaneira claro que a primeira consequência da criação da alma é a difusão da vida. A intenção de criar a vida é coerente com o estabelecimento da identidade entre o que se move com vista a um fim, que elege como o melhor, e o vivente. A cadeia das perguntas perde, portanto, a circularidade com que se apresenta, para se ordenar linearmente: a ordem da vida institui o movimento teleológico da alma visando o bem.

Mas aqui há, para nós, duas criações simultâneas. A primeira é a da alma, que trará então ao visível aquilo que nele não existia antes: a vida (36e, 38b). Só poderá, portanto, ser obra de criação, por um demiurgo, também ele vivo, que decidiu criá-la à sua semelhança (29e). A alma deve ser então entendida como o princípio vital, a Vida (bios: 36e5), princípio divino e imortal de todos os viventes[12] (41c2). A outra criação, como vimos, é a do cosmo propriamente dito.

Esta conclusão elucida o sentido da crítica platónica à tradição pré-socrática. A motivação do demiurgo é criar um vivente sensível: o cosmo. Com este argumento, Platão associa a criação do cosmo à da vida, mediando-a pela criação da alma. São assim corrigidas as cosmogonias pré-socráticas (vide Leis X 889a-890c). Justifica a criação[13] pela oposição do não vivo ao vivo (30c-31b), implicando a necessária anterioridade da criação da alma à do corpo do cosmo[14].

Parece oportuno interpretar a decisão de um demiurgo bom, de constituir um ser visível à sua semelhança (30c7-31a1), como a de criar[15] outras almas, outros seres vivos, diferentes dele primeiro por terem sido criados, depois por serem dotados de naturezas sensíveis.

De acordo com a hipótese, a ordem estaria identificada com a vida, tal como a desordem com a sua ausência[16]. A alma constituiria o princípio portador da vida (vide Fedro 245c-247c), sendo identificada como “princípio de movimento” por ser dotada da capacidade de eleger e atingir uma finalidade[17]. E aí o Timeu 46c-e é bem claro: só a inteligência é dotada da capacidade de eleger uma finalidade, representando a Razão (nous) a única forma de atingir a melhor finalidade: o Bem[18] (30b).

3. O Tempo

Constituída a alma, do centro para a periferia do corpo do cosmo (34b, 36d-37a), esta começa a girar, arrastando consigo o visível[19] (36d-e), segundo os círculos do Mesmo e do Outro, mantendo fixas as proporções harmónicas nela inseridas pelo demiurgo (36b-d, 38c-39b). A alma viva é, por assim dizer, ciente[20] da sua unidade e diversidade (37a-c), expressas nos dois círculos que congrega no seu movimento. A narrativa prossegue com a abordagem do primeiro dos conceitos operatórios, introduzidos para regular o funcionamento do cosmo: o Tempo.

O problema com que o demiurgo inicialmente se confronta é o de “tornar [a “imagem” (agalma: 37c7)] mais semelhante” (mallon homoion: 37c8) ao modelo[21]. A dificuldade reside no facto de a natureza do “ser vivo eterno” (zôion aidion on: 37d2) só poder ser conferida à cópia “na medida do possível”:

“...foi por isso que concebeu produzir uma imagem móvel da eternidade. Assim, ao ordenar o céu, produziu uma imagem viva da eternidade que permanece na unidade, imagem essa que se move segundo o número e que é aquilo a que chamamos tempo” (chronon: d8; 37d5-8; vide 38a7-8).

A motivação do demiurgo não é difícil de compreender. Ao contrário do modelo, a imagem move-se. Como poderá então ser-lhe conferida eternidade? A solução poderia passar por lhe atribuir não mais que “perpetuidade”, permanência no tempo, como é claro logo na continuação da narrativa.

A distinção acha-se implícita na comparação do modelo com a cópia, no entanto, parece não ser respeitada, por terem sido usados termos da mesma família (aiônos: d6, 7; aiônios: d4, 8), sugerindo que a imagem é tão eterna quanto a eternidade que imita[22].

Mas o problema

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