O CUIDADO DOMICILIAR A INDIVÍDUO COM TETRAPLEGIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Por: Sara • 2/7/2018 • 4.541 Palavras (19 Páginas) • 416 Visualizações
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Cienc Cuid Saude 2012 Jan/Mar; 11(1):202-209
demandam tratamento prolongado, geram complicações a longo prazo e geralmente são incapacitantes, além dos profissionais, principalmente a família desempenha um papel imprescindível nesse cuidado. Muitas vezes verifica-se a necessidade de escolher uma pessoa para acompanhar o familiar acometido mais frequentemente e responsabilizar-se pelos cuidados no domicílio, emergindo, então, a figura do cuidador, comumente um integrante do próprio seio familiar(5).
Neste contexto, é de perguntar de que forma se operacionalizam os conceitos de cuidado no cotidiano de uma família de indivíduos com tetraplegia e quais as possíveis demandas, dificuldades, angústias ou necessidades do(s) cuidador(es) no desempenho de suas ações. Tendo em mente tais questionamentos, aflorou a motivação para abordar o tema do cuidado ao indivíduo com tetraplegia, porém numa perspectiva pouco usual em textos científicos, compartilhando uma experiência pessoal e familiar de cuidado em uma linguagem narrada na primeira pessoa do singular. Enquanto um dos autores do texto, faço parte dessa experiência de cuidado em relação a um tio, cujo nome era S.M., vítima de um acidente automobilístico há 17 anos que o deixou tetraplégico, com grandes repercussões para sua família nuclear e ampliada durante os onze anos e meio de vida após o acidente.
Destarte, o objetivo deste artigo é relatar a experiência do cuidado familiar em uma situação de tetraplegia. Além de representar uma experiência pessoal, o estudo justifica-se pelo fato de todos os autores encontrarem-se ligados a um curso de graduação em Enfermagem, profissão cujo eixo central é o cuidado e que, em casos como este, pode atuar diretamente na assistência tanto institucional quanto domiciliar. Espero que esse compartilhamento possa contribuir para a sensibilização e qualificação profissional, dadas as características das ações de cuidado em situações dessa natureza no âmbito familiar.
METODOLOGIA
Trata-se de um relato de experiência, um recurso cada vez mais utilizado em artigos para enriquecer a fundamentação teórica do texto com a própria vivência profissional ou pessoal do autor, sem a formalidade de enquadrar o conteúdo em outra metodologia, por exemplo, o estudo de caso. É uma descrição mais informal e sem o rigor exigido na apresentação de resultados de pesquisa, que se incorpora ao texto e que dá, muitas vezes, mais vida e significado à leitura do que se fosse apenas um texto analítico(6).
As fontes do relato foram as lembranças vividas por uma das autoras do trabalho e as entrevistas com dois familiares cuidadores. Estas foram realizadas com o irmão e a esposa de S.M em suas respectivas residências, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme estabelece a Resolução n.°196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Parecer n.º 089/2011–COPEP/UEM). As entrevistas ocorreram em abril de 2011 e foram orientadas pela seguinte questão norteadora: “Como foi para você a experiência de cuidado ao seu familiar portador de tetraplegia?”. A análise das informações buscou priorizar fatos ocorridos, demandas, complicações e necessidades enfrentadas no transcorrer do tempo, de modo a evidenciar o cotidiano de cuidado no próprio domicílio e no serviço hospitalar, este último, utilizado sempre que se fazia necessário.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
S.M. foi vítima de um acidente automobilístico ocorrido ao entardecer de um dia chuvoso, na volta do trabalho para casa. Meu tio teve a infelicidade de defrontar-se com um carro em luz alta, o que o fez perder o controle da direção, fazendo-o rodar na pista e ir de encontro a uma elevação de terra no acostamento. Infelizmente, sua lesão medular localizou-se entre a 5ª e 7ª vértebras cervicais, as mais frequentemente envolvidas nesse tipo de trauma(7). Questionou-se à época sobre a possibilidade de agravamento da lesão diante da tentativa de testemunhas em colocá-lo desacordado em dois automóveis diferentes, até chegar o socorro adequado, considerando a desinformação sobre imobilização e primeiros socorros, situações comuns em casos dessa natureza. Sobre isso, a literatura aponta o fato de que as primeiras complicações já podem ter início no próprio local do acidente, quando pessoas, com o intuito de ajudar, manipulam incorretamente a vítima, transformando muitas vezes um caso de simples fratura com prognóstico favorável em um caso de secção completa de medula, com prognóstico totalmente diferente, ou até mesmo levando à morte pós-trauma(1).
A lesão medular o deixou tetraplégico no auge de sua vida produtiva, aos 42 anos de idade. S.M. era casado com E.S., do lar, com quem tinha duas filhas. Irmão e sócio de meu pai em uma agropecuária, ele residia na área urbana de um município de pequeno porte, ao passo que nós morávamos na área rural. Essa experiência confirmou que as mudanças após um acidente e consequente tetraplegia são acompanhadas de profundas alterações no núcleo familiar, quando a família tem que se mobilizar e redimensionar sua vida para realizar os cuidados à pessoa lesionada, além de capacitar-se para melhor compreender o indivíduo e as implicações da lesão(4). O depoimento de minha tia dá a dimensão das alterações sofridas:
[...] nossa vida sofreu um 360°, reconstruímos uma nova ordem de vida e de trabalho (E.S.).
S.M. sempre foi uma pessoa muito amigável. O grande quintal em frente à sua casa era um convite às pessoas para parar e conversar. Era um homem de muita fé e, com o passar do tempo, aprendeu a conviver com a deficiência, mesmo sem aceitá-la completamente. Os primeiros dias foram de muita revolta, embora permeada da esperança de novamente recuperar os movimentos, o que aconteceu mais tarde com parte do movimento dos braços.
As primeiras grandes preocupações já afloraram no hospital, onde permaneceu por trinta dias. A esposa questionava os trabalhadores de saúde sobre quando seria retirada a sonda vesical e quando o trânsito intestinal voltaria ao normal, funções e órgãos que infelizmente deixaram de funcionar adequadamente desde então. Para auxiliar na assistência, E.S. recebeu treinamentos de enfermeiros quanto às técnicas necessárias durante os cuidados, além de ter realizado um curso de cuidadora junto ao Centro de Vida Independente (CVI).
Outro momento crítico foi o da alta hospitalar, cabendo a minha tia, às filhas e a meu pai a função de cuidadores, assumida sempre com amor e desprendimento. Na época eu nem
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