Heráclito Fontoura Sobral Pinto - Resenha

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difícil de apreendê-la e talvez se assemelhe mais intimamente ao daimon grego, o espírito guardião que acompanha cada homem ao longo de toda sua vida, mas está sempre olhando por sobre seu ombro, resultando que ele é mais facilmente reconhecido por todos que encontram o homem do que por ele mesmo. Esse daimon — que não tem nada de demoníaco em si —, esse elemento pessoal num homem, só pode aparecer onde existe um espaço público; este é o significado mais profundo do âmbito público, que se estende muito além do que entendemos comumente por vida política. Na medida em que esse espaço público é também um âmbito espiritual, há manifesto nele aquilo que os romanos chamavam de humanitas, entendendo por isso algo que era a própria estatura da qualidade humana, pois era válida sem ser objetiva. É precisamente o que Kant, e depois Jaspers, entende por Humanität, a personalidade válida que, uma vez adquirida, nunca abandona um homem, ainda que todos os outros dons do corpo e da mente possam sucumbir à destrutividade do tempo. A humanitas nunca é adquirida em solidão e nunca com a oferta de sua obra ao público. Só pode ser alcançada por alguém que lançou sua vida e sua pessoa na “aventura no âmbito público” — quando, nesse curso, arrisca-se a revelar algo que não é “subjetivo” e, por essa própria razão, não pode reconhecer nem controlar. Assim, a “aventura no âmbito público” onde se adquire a humanitas torna-se um presente para a humanidade.”.] e, definitivamente, Sobral Pinto se aventurou no âmbito público.

Em razão de cartas que, materialmente, configuravam um relacionamento extraconjugal com a esposa de um tenente-coronel, tendo em vista um escândalo midiático premente, Sobral Pinto pediu sua demissão do cargo de acusador público, sendo esta aceita, durante o governo do então Presidente Washington Luís. Posteriormente aceitou o cargo de Procurador-Geral, o qual novamente se viu obrigado a pedir demissão em razão do mesmo episódio[ SCALERCIO, Márcio. Op. cit. p. 66-70. ]. Nascia o advogado que se consolidaria em defesas humanistas, sepultando o passado de acusador irredutível.

Sobral Pinto, que tinha por hábito o terno e a gravata, com o colete e o chapéu, carregando sempre um guarda-chuva na mão[ Idem. p. 316.], talvez porque soubesse que as tempestades não avisam sua chegada e, claramente, Sobral Pinto enfrentou os tempos sombrios, de duas guerras mundiais e seu entremeio, da Revolução Russa, da ascensão e queda do fascismo e do nazismo, da ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas e da ditadura militar, tenho vivido sob a égide de todas as Constituições da República[ Nasceu em 1893, sob o vigor da primeira Constituição do Brasil República, de 1891, e faleceu em 1991, sob a regência da Carta Magna atual de 1988.]. Talvez, por outro lado, fosse porque compreendia a necessidade do devido processo legal, tantas vezes nomeado como um princípio guarda-chuva[ Nesse sentido: WALDRAFF, Célio Horst. Antecipação de tutela ex officio. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8377/antecipacao-de-tutela-ex-officio> declara: “A essa noção ampla de devido processo (como uma espécie de "princípio guarda-chuva"), contrapõe-se uma percepção restritiva, no sentido da garantia a um processo legítima e previamente ordenado.”; No mesmo sentido: OLIVEIRA, Daniela O.; SANTOS, Patrícia M. A. dos. Inscrição em dívida ativa, notificação do lançamento e o devido processo legal. Disponível em: <http://portal.estacio.br/media/4201490/inscri%C3%A7%C3%A3o%20em%20divida%20ativa.pdf>, estas autoras apontam: "Esse dispositivo erigiu um princípio "guarda-chuva", denominado princípio do devido processo legal, a partir do qual toda a estrutura do sistema processual é construída.".].

Durante o período de Vargas, tornou-se evidente seu pathos[ Do grego πάθος com raíz na palavra πάσχειν. Não no sentido literal de “paixão”, mas naquele apontado por Hardt, Michael. Gilles Deleuze: um aprendizado em filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996. p.98. "[...] o pathos não envolve um corpo "sofrendo" paixões; ao contrário, o pathos envolve as afecções que marcam a atividade de um corpo, a criação que é alegria.".], isto é, a de suas ações refletindo as ideologias católicas com perceptível norte na imitatio Christi[ Isto é, seguir o modelo de Cristo, segundo a tradição cristã. Como exemplo de tal, tem-se os diários de Angelo Giuseppe Roncalli, née Papa João XXIII. Journal of a Soul. Nova Iorque: A&C Black, 2000.], passando a defender pessoas, ainda que não concordasse com suas ideologias. Assim, mesmo tendo pessoal desapreço pelo comunismo, repudiando o materialismo histórico de Marx[ SCALERCIO, Márcio. Op. cit. p. 86.], durante o Estado Novo se tornou advogado de Luiz Carlos Prestes[ Grafado “Luiz” e não “Luís” pelos historiadores Márcio Scalercio e John W. F. Duelles.] e Harry Berger. Nesse período, Sobral Pinto já era o patrono de Roberto Sisson, membro da ANL, que fazia oposição ao governo Vargas e se encontra preso e sob constantes sessões de tortura, sendo, enquanto advogado, barrado de visitá-lo pois se negava a rer revistado pelas autoridades policiais, entendendo, em tal ato, uma incongruência com suas prerrogativas profissionais[ SCALERCIO, Márcio. Op. cit. p. 93.].

No caso de Berger, que se tornou largamente estudado, Sobral Pinto assinalou que a polícia já tinha em sua posse documentos com todas as informações e que a tortura não se justificava[ Cf. PINTO, Heráclito F. Sobral. Por que defendo comunistas. Belo Horizonte: Ed. Comunicação, 1979. p. 31.]. Em 1937, com Berger preso em condições desumanas durante meses, Sobral Pinto fez uma das peças mais famosas e, disposto a garantir o mínimo de condições humanas para Berger, invocou a lei de defesa aos animais (Decreto nº 24.645/34). O efeito foi além do esperado, tornando-se amplamente conhecidas, posto o alcance social, as condições desumanas em que estava Berger[ Cf. DUELLES, John W. F. Sobral Pinto: "The conscience of Brazil". Austin: The University of Texas Press, 2002. p. 50 et. seq.]. Conseguiu, após seu hábito de disparar cartas para todas as autoridades, sensibilizar o então ministro Macedo Soares, culminando com a remoção de Berger para um local menos degradante, mui embora, posteriormente, o militante alemão tenha sido condenado a 13 anos de cárcere[ Cf. SCALERCIO, Márcio. Op. cit. p. 117.].

Com a deportação de Olga Benário, alemã ativista do partido comunista, então grávida de Luiz Carlos Prestes, em tom que soa, historicamente, como um presente do Brasil para o Alemanha nazista, esta foi levada pela Gestapo, para um presídio feminino, onde daria a luz à Anita Leocádia Prestes. Em uma carta