Análise do Conto "A Cartomante"
Por: Sara • 10/3/2018 • 2.721 Palavras (11 Páginas) • 596 Visualizações
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"Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então - o que era ainda pior - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. 'Vem já, já, a nossa casa: preciso falar-te sem demora'. Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem já, já, para quê? A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que iria passar, que chegou a crê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo (...)." (pg. 39, MACHADO DE ASSIS)
No trecho destacado, percebemos que o narrador não está descrevendo as ações de Camilo, e sim seu raciocínio, seus pensamentos e sentimentos em relação à situação em que se encontra, havendo suposições de ações jamais realizadas, como a ideia de levar a arma para a visita ao amigo.
Ainda que o foco principal do narrador seja o personagem Camilo, é perceptível que não irá se limitar a ele, jogando com diversos pontos de vista ao longo da história, jogo esse que atua nas percepções do leitor acerca dos acontecimentos. Um dos pontos em relação ao qual este jogo se torna mais evidente são as recorrentes descrições de Rita. Inicialmente caracterizada pelo narrador como "bela" (pg. 33, MACHADO DE ASSIS) e depois como "dama formosa e tonta" (pg. 35, MACHADO DE ASSIS), ela será caracterizada por Camilo e Vilela como "graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa" (idem). Percebe-se assim que o narrador e os dois personagens masculinos da trama não compartilham da opinião de que ela era tonta, mas concordam acerca de sua beleza. Vemos também um jogo de pontos de vista com a chegada do bilhete anônimo, que invade o amor se não sublime, pelo menos deleitoso, ao colocar Camilo como "imoral e pérfido" (pg. 37, MACHADO DE ASSIS). Derruba-se assim o véu despreocupado e desinteressado que vinha cobrindo o romance dos dois, no qual uma curta angústia surge apenas diante da ameaça de delação, e não de uma possível dor na consciência de estar ela traindo o marido, e ele o melhor amigo.
Tendo percebido esse jogo de olhares, de pontos de vista que vai sendo utilizado ao longo do texto, devemos ter em mente que este não é um narrador confiável. Ainda que não haja em relação aos eventos da obra, sua narrativa não é tecida sem intervenções de suas próprias opiniões, ainda que pretenda-se parecer neutro. Isto se torna mais gritante quando entramos no momento de digressão, onde irá falar do passado das personagens e o princípio do romance adúltero. Para o narrador, Rita é uma "dama formosa e tonta", enquanto Camilo um "ingênuo na vida moral e prática" (pg. 35, MACHADO DE ASSIS) carente tanto de experiência, quanto de intuição. A falta de neutralidade do narrador aparece também ao falar, no início do romance entre eles, de forma irônica, da ajuda prestada por Vilela e Rita ao amigo Camilo quando este perde a mãe: "Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor". (pg. 36, MACHADO DE ASSIS). Vê-se assim a construção de um Camilo desprovido de autonomia, dependente dos outros, passivos diante da própria vida, aspecto que fica ressaltado no mesmo parágrafo que o narrador termina de construir sua visão negativa de Rita, após chamá-la de tonta e de dizer que "traduzia Hamlet em vulgar" (pg.34, MACHADO DE ASSIS):
"Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos!" (pg. 36, MACHADO DE ASSIS)
Camilo não teria poder ativo nem na decisão de trair ou não seu amigo, sendo tratado apenas como uma vítima das ações de Rita, mas este é o relato de um narrador que não é neutro, e pior, que finge ser neutro ao usar da ironia. Essa falta de confiança que deve ser conferida ao narrador deste conto reaparece quando observamos com mais atenção a maneira como os eventos nos são apresentados. Constantemente o narrador irá nos apresentar os fatos e as sensações acerca destes na ordem e com o destaque que lhe forem mais convenientes na construção de seu argumento. Isso é evidenciado pela própria narrativa do conto, que começa com uma paráfrase de Hamlet, um tema elevado, para então espiralar para a conversa de Rita e Camilo acerca da visita à cartomante, que poderia ser visto com um tema menos elevado. Vemos também esse cuidado em expôr na ordem e destaque que forem mais convenientes na visita de Camilo à cartomante:
"A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de 40 anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos." (pg. 41, MACHADO DE ASSIS, grifo nosso).
Numa leitura rápida e despreocupada deste parágrafo, como ocorre com a maioria de nós em uma primeira leitura deste conto, a perspicácia do narrador passa despercebida, e alcança com êxito o objetivo de nos ludibriar. A cena na qual Camilo se senta com a cartomante é escolhida como a cena da caracterização física da mulher, falando de seus olhos e seu olhar. Porém, realizando uma leitura mais atenta, percebemos que a parte que está destacada no texto deixa evidente que seria impossível, naquelas circunstâncias, que Camilo visse com exatidão as feições da mulher, o que também explica a grande sensação que o olhar dela criar nele, já que ele não vê realmente os olhos dela. Como o narrador vêm seguindo Camilo, seus pensamentos e suas impressões, facilmente nos enganamos que aquilo que o narrador diz é exatamente aquilo que Camilo vê, o que não é necessariamente verdade já que, como vimos, este não é um narrador confiável.
3. A arte de ludibriar
Percebemos, então, que o grande objetivo do nosso narrador não é exatamente nos contar uma história, tampouco trata ele de uma moral, não havendo nem condenação por parte dele do adultério, ou da vingança, tratada de maneira rápida, impessoal, quase jornalística. Tampouco se crítica especificamente
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