A representação da figura do diabo no Auto da Compadecida
Por: Carolina234 • 17/5/2018 • 2.032 Palavras (9 Páginas) • 548 Visualizações
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Ao longo da história o Diabo vai perdendo aquela imagem de um ser poderoso e que provoca medo, assim como ele é apresentado pelo demônio:
Silêncio! Chegou a hora do silêncio para vocês e do comando para mim. E calem-se todos. Vem chegando agora quem pode mais do que eu e do que vocês. Deitem-se! Deitem-se!Ouçam o que estou dizendo, senão será pior! (p. 139)
No momento em que Manuel se faz presente no cenário de julgamento, toda essa ferocidade, essa figura amedrontadora do Encourado vai se dissipando, e a presença de Manuel o causa certo desconforto, e isso podemos notar neste trecho da fala do Encourado:
ENCOURADO: Grande coisa esse chamego que ela [a Compadecida] faz para salvar todo mundo! Termina desmoralizando tudo. (p. 172).
Antes mesmo da presença da Compadecida e de Manuel, João Grilo já havia rebatido uma de suas decisões, que foi levar os mortos direto paro o inferno sem que houvesse um julgamento, tendo a sua coragem testada sobre a ameaça e desconforto que a presença de Jesus Cristo provoca a sua imagem.
João Grilo: Ah! pancadinhas benditas! Oi, está tremendo? Que vergonha, tão corajoso antes, tão covardeagora! Que agitação é essa?
Encourado: Quem está agitado? É somente uma questão de inimizade. Tenho o direito de me sentir mal com aquilo que me desagrada (p. 143)
Alguns dos argumentos usados pelo Encourado remetem a política terrena do contexto em que a obra foi escrita, principalmente no momento em que ele dá o julgamento ao Padre.
Encourado: É o que você pensa, minha safra hoje está garantida. Tudo o que eu disse do bispo pode se aplicar ao padre. Simonia, no enterro do cachorro, velhacaria, política mundana, arrogância com os pequenos, subserviência com os grandes.(p. 152)
Essas acusações funcionam como uma crítica feita aos que possuíam privilégios por serem ricos e detentores do poder, da “subserviência com os grandes” e a “arrogância com os pequenos”, ou seja, aqueles que não possuíam dinheiro, que eram desprovidos de qualquer privilégio por não estar no topo da sociedade ou ter algum tipo de ligação com as famílias de nomes consagradas e ricas, sem esquecer os negros que eram batizados por ultimo ou só quando ofereciam dinheiro ao padre para que ele aceitasse batizar as crianças negras.
A figura do Diabo na história se torna alvo de zombaria, não só dos mortos, mas também de Manuel que brinca lhe dando ordens e ao mesmo tempo revogando tais ordens, mexendo com o emocional do Encourado e deixando-o confuso:
Manuel, ao Encourado: Anote aí negação do livre arbítrio contra João.
Encourado: Está anotado.
Manuel: Pois desanote. Não está vendo que é brincadeira? João sabe lá que é livre arbítrio, homem? (p. 157-8).
João Grilo: O senhor vai-me desculpar, mas eu não fui acusado de coisa nenhuma.
Manuel: Não?
Encourado: Foi mesmo não. Começou com uma confusão tão grande que eu me esqueci de acusá-lo. Vou começar. (p. 162).
Após essa imagem de grandeza, de uma figura a ser temida, o Encourado passa a receber dos acusados nomes que apenas reafirmam a perda de tais características que igreja lhe atribuiu, esses apelidos são: Catimbozeiro, filho de chocadeira, patife e etc. Desse modo, o Diabo acaba se aproximando de uma figura mais humana, semelhante ao homem sertanejo.
4. A REPRESENTAÇÃO DA FIGURA DO DIABO EM GIL VICENTE.
O Auto da feira tem como finalidade principal promover a moral religiosa, na feira vende aquele que melhor tira proveito da pratica de sedução através dos argumentos. O que se pode captar dessa prática é o caráter da retórica, que usa elementos de persuasão de uma doutrina para convencer através da comunicação, sempre levando em conta aquele que está ouvindo, ou seja, o auditório, esses discursos criam uma interdependência entre ambos, orador e ouvinte.
O Auto da Feira foi apresentado em Lisboa em uma manhã de natal no ano de 1527, durante o reinado de D. João III de Portugal, trata-se de uma feira onde são vendidas virtudes para honrar a Virgem, essa feira é promovida por Mercúrio. O tempo é instituído como o mercador-mor que com o pedido que é concedido por Deus para mandar o anjo serafim a auxilia-lo, porém o Diabo aparece também para feirar, mas Serafim e o Tempo resolvem o expulsar da feira, sem sucesso, pois o Diabo acaba convencendo os dois, o deixando ficar.
Para que um lugar na feira possa ser cedido ao Diabo ele começa a argumentar tentando convencer do porque ele merece estar ali, mesmo sem a moral necessária, este intenta através de seu discurso eloquente ganhar credibilidade, não com Tempo e Serafim, mas futuramente com os fregueses. Eis alguns trechos que comprovam o seu total esforço retórico:
DIABO: Eu bem me posso gavar, e cada vez que quiser, que na feira onde eu entrar sempre tenho que vender e acho quem me comprar. E mais, vendo muito bem, porque sei bem o que entendo; e de tudo quanto vendo não pago siza a ninguém por tratos que ande fazendo.
Quero-me fazer à vela nesta santa feira nova. Verei os que vêm a ela, e mais verei que m’ estorva de ser eu o maior dela.
Continuando o diálogo entre o Diabo e o Serafim:
SERAFIM: Não venderás tua aqui isso, que esta feira é dos céus: vai lá vender ao abisso, logo da parte de Deus.
DIABO: Senhor, apelo eu disso.
S’ eu fosse tão mau rapaz que fizesse força a alguém, era isso muito bem: mas cada um veja o que faz, porque eu não forço ninguém,
Se me vem comprar qualquer clérigo, ou leigo, ou frade falsas manhas de viver, muito por sua vontade; senhor que lh’ hei-de fazer?
E se o que quer bispar há mister hipocrisias e com ela quer caçar, tendo eu em tanta em perfia, poque lh hei-de negar? E se üa doce freira vem à feira por comprar um inguento, com que voe do convento, senhor, inda que eu não queira, lh’ hei-de dar aviamento
O Diabo e o Serafim da obra Vicentina representam o bem na luta contra o mal, baseando-se na moral cristã, utilizando a alegoria para construir e apresentar
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