Resenha: O espelho de Heródoto
Por: Lidieisa • 1/11/2018 • 1.958 Palavras (8 Páginas) • 453 Visualizações
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Também na formação da retórica da alteridade, com intuito de produzir efeito de credibilidade, o narrador deve se dedicar a escrita do “thôma”, que são os relatos das maravilhas e curiosidades, muito presente na Histórias, as quais Heródoto relata para que não sejam esquecidas, pois são dignas de memória. Na descrição dos lugares, o “thôma” apresenta-se como uma tradução das diferenças entre aqui e além, em que representa a beleza e a raridade. Além de ser uma tradução da diferença, essa característica também se apresenta como um critério de classificação quantitativo, podendo ser mais ou menos extraordinário. Ligado ao olho do viajante, atribuindo efeito de realidade, e sendo um procedimento para “fazer crer” desenvolvido pela narrativa de viagem, sendo assim, “avaliar, medir, contar são operações necessárias para a tradução do thôma no mundo em que se conta.” (HARTOG,1999, p250).
‘Traduzir, nomear, classificar’ é o subtítulo da quarta parte do texto de Hartog aqui analisado. Ponderando cada um desses verbos podemos observar um código de transformação linguística, essencial para a retórica da alteridade visível na obra de Heródoto. A tradução visa a equivalência semântica e expressiva transposta de uma língua a outra, processo de extrema complexidade que o narrador precisa conduzir, exemplificado na narrativa de Léry, que em História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, buscou essa equivalência, e defendendo sua tese de que não são tantas as coisas que diferem essa novas terras com as já descobertas, pois se trata de uma mesma natureza, apenas se diferem na língua, cuja qual é suscetível a ser aprendida, portanto a tradução é o que aproxima mas ao mesmo tempo difere o Antigo do Novo Mundo. Em contrapartida na obra de Heródoto “não se experimentava o desejo de chegar a conhecê-las intimamente (civilizações estrangeiras), através do domínio das línguas estrangeiras.” (HARTOG,1999, p253). As Histórias não se organizam em um sistema de tradução, mas certamente se utiliza desse procedimento, e pode ser encontrado certo número de traduções nesta obra, e estas estão fundamentalmente ligadas à atividade de nomeação. Impor ou conhecer nomes implica em determinado poder sobre o outro nomeado, e quando é preciso ser feito uma tradução de nomes comuns ou próprios e estes estão ausentes na tabela de equivalência, representam a alteridade não traduzível. “No total, os espaços em branco do ‘dicionário’ confirmam que nomear o outro implica em classificá-lo” ((HARTOG,1999, p258). Esta posição superior de classificador também reflete em si próprio, pois ao classificar o outro, classifico a mim mesmo. O objetivo da nomeação tradutora, deve ser encontrar do outro lado a identidade, e isso representa essa ação em cadeia, pois traduzir me conduz a nomear, e nomear me leva a classificar. Esta postura do viajante que nomeia, posição de podem em relação a quem o escuta e a quem ele nomeia, lembra em muito, como pontua Hartog, a experiência de Adão frente ao mundo novo. A nomeação e a classificação portanto se apresentam como “uma das molas da escrita da narrativa de viagem” (HARTOG,1999, p261).
Nas Histórias a descrição ocupa uma função importante, e o olho de Heródoto é o olho da testemunha, que relata o que viu, com o objetivo de fazer ver. A descrição do outro marca a linha que separa entre ‘eles’ e ‘nós’ e a necessidade de falar o que viu sendo uma figura dessemelhante à quem se fala torna o processo monstruoso, como na descrição de Léry acerca dos animais na América, que une em uma só figura diversos elementos conhecidos para quem se conta. “Quando Heródoto descreve o hipopótamo e o crocodilo do Egito, ou o cânhamo da Cítia, quando Léry descreve o tapiruçu e a flora do Novo Mundo- ambos põem em ação uma taxionomia (...) ambos operam uma especialização do saber.” (HARTOG,1999, p263). A descrição, portanto, introduz o taxionômico na narrativa e essa introdução transforma a descrição em não apenas ver e fazer ver, mas saber e fazer saber. O olhar da testemunha deve organizar, delimitar, controlar e autentificar a descrição, e conhecer a quem se descreve é essencial para que a mensagem seja codificada, ou seja, falar em grego para os gregos, exemplo disso é usar da navegabilidade como delimitação geográfica de um povo que nem ao menos utiliza da navegação como fator principal. A enunciação pode ser em forma de vestígios, utilizando pronomes como operadores descritivos, exemplificado na utilização das medidas gregas em outra sociedade, ou explicita, carregada de expressões como ‘eu acho’ e ‘creio que’, sendo a medida de diferença entre eles e nós (gregos) mais demarcado na segunda se comparada com a primeira maneira de enunciação, mesmo ainda se tratando de uma intervenção do narrador na narrativa.
“O método do viajante ‘chega’ a construir uma figura do outro que seja ‘falante’ para as pessoas do próprio. Ora, nessa perspectiva da narrativa de viagem, as descrições são um dos procedimentos que permitem ao narrador produzir e transmitir uma certa carga de alteridade.” (HARTOG,1999, p268) e para que se reproduza essa carga de alteridade em descrições de práticas desconhecidas a nós, Hartog aponta a necessidade de utilizar termos e vocabulários técnicos, adotando uma postura neutra, como foi quando Heródoto descreveu o ritual de Zálmoxis e quando Léry descreveu a antropofagia dos tupinambás. Essa forma de descrição implícita, que apresenta um quadro sem legenda, ou seja, sem juízos de valor, não utiliza da comparação, analogia ou negação, mas recorre ao esquema de inversão para que se mantenha uma alteridade mais abrangente e profunda, pois a descrição não oferece medidas de diferença. Porém quando utilizado o caráter taxonômico na narrativa, esta tende a uma descrição explicita, com uma alteridade determinada e calculada. A ausência de marcas de enunciação tem a finalidade de aumentar a alteridade da narrativa.
O terceiro excluído é o ultimo subtítulo do texto, e nele é apresentado de forma sucinta como a retorica da alteridade tende a ser uma estrutura dual, portanto, quando se apresenta uma disposição cênica triangular, como é o caso do texto de Heródoto, com as amazonas,
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