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A SOMBRA DA MANGUEIRA

Por:   •  30/8/2018  •  2.327 Palavras (10 Páginas)  •  350 Visualizações

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Enquanto as pessoas iam chegando e colonizando todo o vale do rio a cidade ia se desenvolvendo, crescendo e adquirindo forma. Imagino que o primeiro carro – automóvel trazido por um dos imigrantes que vieram para a cidade– deve ter aguçado a curiosidade das crianças que nasceram na vila, pois era uma realidade bastante diferente do que elas viam ali. Mas calculo que nada deve ter superado a chegado do primeiro telefone, com ele os homens que chefiavam o lugar poderiam entrar em contato com as pessoas da cidade vizinha e assim estabelecer uma aliança com outras pessoas.

Eu cheguei aqui por volta de 1950. Depois de mais ou menos uns 8 anos e muito trabalho, quando as pessoas já batiam no peito e se declaravam dominguenses, finalmente a vila passou a ser cidade. Para as pessoas que moravam aqui foi um grande acontecimento, pois isso mudava tudo, os recursos começariam a chegar para que São Domingos começasse a andar com as próprias pernas e mostrar porque merecia esse voto de confiança, mas a alegria durou pouco porque o prefeito de Colatina – cidade na qual morei muitos anos antes de São Domingos – entrou na justiça e reverteu o processo. Uma batalha perdida, mas não a guerra.

Eu trabalhei na primeira escola da cidade. Não havia os quadros de pinceis que vemos hoje nas salas de aula, tão pouco os livros cheios de gravuras. Na parede ficava uma lousa negra, nem fazia questão de ser esverdeada a coitada. O pó do giz me dava muita alergia, sempre tive uma rinite insuportável, mas fazer o que? Eram os ócios do ofício e lecionar sempre foi minha paixão. Não foi nada fácil convencer a gente simples de que a educação poderia ser uma nova alternativa para os seus filhos, de que estudar, comprar o lápis, o caderno e a borracha não era perda de dinheiro e muito menos de tempo. Não posso culpar os pais dos meus antigos alunos, apesar de amar a história da minha cidade do coração não posso fechar os olhos e dizer que foi tudo um mar de rosas, as pessoas trabalhavam duro e quando conhecemos apenas uma realidade passamos a acreditar que aquela seja a única.

– Não sei não professora, esse negócio de estudo pode fazer meus menino acreditar em vida mansa e no que não pode ter – disse o pai de um deles para mim uma vez.

– O conhecimento não torna as pessoas orgulhosas, mas a ignorância, por outro lado, pode deixá-las cegas – eu disse.

E ele entendeu que eu não falava da ignorância de dizer algo errado ou escrever uma palavra com s quando deveria ser com um ç e sim da ignorância de não conhecer nossos deveres, de não tomarmos conhecimento de nossos atos sobre determinadas coisas. Sou uma senhora, já vi muitas coisas das quais não compactuei em toda minha vida e digo que se uma pessoa tomasse conhecimento do seu destino e de como tem poder para alterá-lo nosso mundo não estaria como está. Porém, também não sou uma dessas senhoras ranzinzas que acham que os jovens estão perdidos e tal. Na verdade, acredito que nossa juventude seja a visão clara do futuro, pois ela está enredada com ele e com o mundo.

Ao ver os nossos jovens nas ruas com as caras pintadas de verde e amarelo lutando por direitos que lhes são cessados hoje, lembro quando a vila passou a cidade em definitivo. Por volta de 1988 as pessoas se mobilizaram para tornar São Domingos novamente uma cidade independente e para isso as pessoas recolheram milhares de assinaturas e a minha ainda deve estar lá no abaixo-assinado, com as primeiras letras de cada nome bem inclinadas e cheias de curvas como sempre gostei. Foi minha primeira grande participação na história de nosso município. Essa foi mais uma batalha, mas dessa vez vitoriosa revelando a união de nosso povo. Não foi uma luta envolvendo um império com reis e rainhas, tão pouco com homens de armaduras reluzentes montados em corseies negros, mas mesmo assim foi tão valorosa quanto, pois era a nossa luta, a luta das pessoas que acreditavam na emancipação de nossa terra.

Gosto de pensar que São Domingos era como um adolescente lutando pela sua liberdade, saindo da casa dos pais com sua herança em busca de autonomia, contudo não um rapaz imprudente como o filho pródigo, nosso objetivo era muito mais significativo do que isso. E em 30 de março de 1990 as pessoas vibraram vitoriosas com sua conquista, não era apenas um sonho idealizado, todos juntos criaram uma família de muitos filhos. E apenas 2 anos depois mais uma das inúmeras realizações que nossa terra já presenciou aconteceu, porque eu acredito que não existe nada mais democrático do que as pessoas exercerem seu direito de cidadania escolhendo seus representantes e desse modo São Domingos do Norte elegeu seu primeiro prefeito, Domingos Pagani, homem que teve um grande significado na história da cidade e também em sua emancipação.

Não participei de toda a história dominguense, cheguei aqui como uma intrusa e fui acolhida por sua gente. Verdade que sempre fui apaixonada por sua história e como ocorreu sua colonização. Em todos os lugares que morei – e acredite foram muitos – busquei saber o que fosse possível a respeito da sua origem e o que eu não conseguia saber através de livros eu imaginava, como fiz com muitos aspectos da origem de São Domingos. Acredito que isso seja importante porque quando conhecemos as raízes, temos um melhor entendimento dos frutos que a árvore gera, assim como a minha grandiosa mangueira. Certamente alguém tão esperançoso quanto Bertolo deve ter pensado que o lugar onde a mangueira está plantada atualmente seria um bom lugar, ali perto do rio ela teria água suficiente para se desenvolver. Mas ele precisou escolher o lugar com muita atenção, nem muito úmido nem muito seco. E depois, quando as águas do rio por algum motivo diminuíssem, algumas pessoas comprometidas precisariam regar a pobre árvore para que ela não perecesse. Já adulta a mangueira daria seus frutos, retribuindo todo o cuidado e amor que as pessoas a ofereceram durante os anos e o pagamento seria com frutos tão deliciosas quanto os que posso saborear hoje.

Alfabetizei muitos homens e mulheres que fizeram grandes coisas em nossa cidade e me sinto realizada por isso. Há 25 anos atrás nascera minha primeira neta, uma linda menininha de olhos azuis brilhantes, filha da minha única filha que eu trouxe comigo para nossa cidade e também filha de minha terra natal do coração. Hoje sou uma bisavó, ora não pense também que sou uma senhora decrepita, ainda tenho meus pensamentos muito bem organizados, certo? E andando pela rua, mesmo com alguma dificuldade, observo a modernidade alastrada por todo canto e como as pessoas nem a notam; as farmácias, o posto de saúde, o banco, os postos de gasolina, a escola estadual,

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