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A Sombra

Por:   •  6/12/2018  •  5.292 Palavras (22 Páginas)  •  325 Visualizações

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A sombra dizia isso em um tom brincalhão. Seus olhos fitavam-no com gozo e júbilo, com um desejo insaciante. Podia sentir em seu rosto a respiração pesada daquela coisa. O seu hálito não tinha um cheiro normal. Não era o cheiro de alguém que dormiu muitas horas ao dia e não escovou os dentes assim que acordou. Aquele hálito cheirava a ódio, sofrimento, desespero e, acima de tudo, morte. A mais simples das mortes. Lerroy não sabia como um cheiro poderia o relembrar de emoções, mas esse cheiro o fazia. Ao mesmo tempo, sentia algo como uma foça, com algum grande animal morto, afogado, ali, dentro da boca da coisa, se decompondo.

Novamente, as lembranças dos dias intermináveis que passou carregando aquele fardo negro começaram a fluir, como uma torneira que pinga lentamente na pia do banheiro em uma madrugada. Ploc, ploc, ploc. Porém, sempre que Lerroy tentava girar a válvula e abrir a torneira, para deixar que suas lembranças pudessem fluir livremente, a sombra, de alguma maneira, vinha e fechava com força. Tanta força que era quase impossível girá-la novamente. A torneira simplesmente para de pingar e as gotas com suas lembranças deixavam de fluir para o cérebro.

A coisa então pronunciou:

- Você também está meio quieto hoje - enquanto seus olhos não piscavam e os seus lábios moviam-se roboticamente. Então, Lerroy ouviu-se dizer sem nem ter noção que diria algo do tipo:

- É meio difícil falar com algo explodindo meu peito.

Não sabia de onde tinha tirado aquela ousadia. Pensou que o sorriso da sombra morreria em seus lábios de novo, seus olhos iriam arregalar-se e devorar sua alma; que entraria em uma fúria arrebatadora e suas garras ocultas como a de um gato pulariam para fora e arrancariam sua cabeça para fora de seu corpo. Um leve pânico instaurou-se em sua mente em questão de segundos. Mesmo assim, sentiu um pouco de triunfo e um sentimento bom que qualquer um que já experimentou de um pouco de ousadia sentiria.

A sombra não fez nada disso. A única coisa que a sombra fez foi gargalhar. Agora, a sua gargalhada era alta, muito alta. Parecia que estava realmente se divertindo desta vez. Esta foi ainda mais assustadora que a primeira. Após alguns segundos, a risada cessou. Um último riso abafado foi dado e um leve suspiro solto.

- Sabe, Lerroy - disse a sombra com uma leve pausa - Você é um cara muito engraçado. E novamente, o sorriso morreu, passando a ser apenas uma boca levemente aberta e com os dentes caninos à mostra. Era a expressão de alguém que estava fascinado.

Agora Lerroy sabia que morreria. Tinha, naqueles poucos segundos, toda a certeza desconfortável do mundo. Suas entranhas seriam rasgadas para fora de seu corpo e sua alma levada até o mais profundo dos infernos. Mas, por incrível que pareça, essa ideia o aliviou. Não tinha mais vergonha de admitir isso.

Desde que a sombra se tornou comum em sua vida, o vazio o preenchia. Os únicos momentos em que sentia algo, era quando a sombra agia estranhamente. Ele sentia não o medo em si. O medo era aquele famoso sentimento de insegurança do desconhecido e da ameaça que vem com ele, um sentimento que faz as pessoas recuarem diante de um perigo eminente de maneira receosa. Mas a sombra não era desconhecida, de maneira nenhuma. Ele sentia uma espécie de paranoia em relação à o que ela poderia fazer, mas ao mesmo tempo um alívio e êxtase satisfatório e quase masoquista. Naquela manhã fria, o que estava acontecendo agora era um daqueles únicos momentos.

Lerroy perdeu um pouco da sua paciência e acabou por fim desafiando a criatura. O êxtase que aquela espécie de medo causava sobre si estava começando a subir-lhe pela cabeça. Mesmo Lerroy tornando-se uma casca vazia e assustando-se só de vez em quando com as atitudes dessa sombra, ele sentiu a necessidade extrema de tirar ela logo dali.

- Você pretende me encarar a manhã inteira? - disse finalmente. Nas primeiras sílabas de sua frase, ele falou de um jeito triunfante. Porém, nas últimas, sua voz abaixou um pouco e deixou escapar aquela leve sensação de insegurança. Ele pôde sentir que a sombra exalou essa sensação. A sombra esbanjou um leve sorriso, como que para descontrair todas as outras coisas aterradoras que tinha feito até agora

- Aaaaaa - suspirou, e após deixar o suspiro preencher o ar, falou - Lerroy, Lerroy... Se eu pudesse, o encararia o dia inteiro, até torná-lo um louco

Lerroy pôde sentir dentro de si que a coisa já estava o deixando louco há algum tempo.

- Olha, D. Eu não gosto quando você começa a me assustar do nada - tentou repreender.

D. Aquela palavra, não, aquela única e mísera letra ainda soava estranhamente em sua boca, e quando ressoava em seus ouvidos e percebia que na verdade ele que estava a pronunciando. Era como se estivesse chamando a sombra por seu nome pela primeira vez. Acontece que, todas as vezes que acorda, ele sente como se realmente fosse a primeira vez. Ao mesmo tempo que a sombra estava ali há um bom tempo, parecia que nunca esteve e tinha que conhecê-la todos os dias de novo. Lerroy sabia o que a letra D significava, porém não queria pensar muito naquilo. Ele poderia estar redondamente enganado, mesmo imaginando que provavelmente estaria completamente certo. O receio de acusar a sombra do que ela realmente era ainda o rondava. Isso só fazia com que ele ficasse mais angustiado. Algumas vezes até esquecia o seu (provável) real significado quando repetia para si algumas vezes em voz alta.

D, D, D, D, D, D, D, D, D, D, D...

O som ecoava na sua mente como um sino distante tocando.

D, D, D, D, D, D, D, dê, dê, dê, dê, dê, dêeeeeeee, dêeeeeeee, dêeeeeeeeeeeee

E o som sumia. Lerroy era despertado do seu semistadoipnótico. Sim, escrito dessa maneira. A sensação era rápida, assemelhando-se à uma criança que não soubesse pronunciar a frase direito e falasse rápido para ninguém perceber. Semistadoipnótico...

Então, a sombra quebrou o silêncio que parecia durar minutos em vez de segundos ao dizer:

- Ah, qual é Lerroy - dizia aquela forma negra em um tom brincalhão - Você sabe tão bem quanto eu que ambos desejaríamos ficar na cama até o sol se pôr. Então, ele nasceria e se poria novamente. Nasceria, e se poria. Nasceria, e se poria - agora falava em um tom de voz mais baixo e sinistro, praticamente soletrando as palavras lentamente - Nas

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