A PALAVRA NO GÊNERO INQUÉRITO POLICIAL NOS PROCESSOS DE CRIME POR HOMICÍDIO: Formatação e texto.
Por: Sara • 5/8/2018 • 5.168 Palavras (21 Páginas) • 277 Visualizações
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2 A PALAVRA NA DIMENSÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM[4]
A palavra, em Bakhtin (2002), não se constrói como uma representação de um grupo de fonemas dotado de significado, nem uma faculdade de expressar ideias por meio de sons articulados, estudada no funcionamento sistemático da linguagem, antes se define pela sua história e historicidade, pelas relações de produção do discurso, pelos registros das mudanças sociais, pela estrutura sócio-política, pelas realizações concretas de sentido da língua em uso e pela ideologia.
Vista dessa maneira, ela apresenta características, que são fundamentais para a sua compreensão de uso no plano das relações dialógicas. Ao discorrer sobre tais instrumentos, Bakhtin (2002) a define por suas quatro propriedades principais: a) pureza semiótica, ligada a sua capacidade de circular como signo ideológico; b) possibilidade de interiorização, que a compreende como único meio de contato entre o conteúdo interior do sujeito (consciência) formado por palavras e o mundo exterior também construído por elas; c) a participação em todo ato consciente que determina o funcionamento da palavra tanto nos processos internos da consciência quanto nos processos externos de circulação, em todas esferas ideológicas; d) neutralidade, princípio que toma a palavra como neutra até o momento em que ela apareça num enunciado concreto, em que venha a assumir uma nova carga significativa.
Quanto à sua neutralidade, se todo contexto metodológico bakhtiniano se firma numa posição social, ideológica e histórica, a palavra só pode ser neutra, ou a partir de uma possível ambiguidade de tradução, já que o termo, em russo, entre outras acepções, possui o sentido de “meio,” “médio,” “comum”, funcionando também como advérbio de lugar: “ no meio de,” ou referir-se aos estudos formais da linguística, tomando-a como signo abstrato, instrumento técnico, que ao se reconstituir no ato enunciativo, adquire um valor ideológico.
Diante deste problema de tradução, enfrentam-se consequências para a identificação dos conceitos pela forma assistemática como os textos foram traduzidos para o português, às vezes não mais do russo, mas do francês ou inglês, surgindo variações de alguns termos de um livro para outro ou, então, pela dispersão das definições desses termos que se espalham ou evoluem na corrente teórica do Círculo. No caso do vocábulo palavra:
Esse termo possui um duplo significado em sua língua original. Ou seja, em russo, o termo palavra não somente tem uma correspondência direta com o termo palavra em português, mas também possui correspondência com outro termo que é discurso (STELLA, 2010, p. 183).
Por esta dimensão, pode representar tanto o nível gramatical e linguístico do termo quanto seu nível discursivo, que assume vários sentidos e enfoques, conforme as atividades de estudo da ciência da linguagem. Cabe, nesse contexto, conceber palavra como signo ideológico absorvido pela consciência humana, transformado e reconstituído no circuito da interação verbal.
O sentido da palavra só se completa, na medida em que a compreensão se faz ativamente, em forma de réplica ao que foi dito. Essa atitude responsiva representa a possibilidade de compreensão, a via em que se coloca o locutor diante de uma forma de diálogo, opondo sua palavra a uma contrapalavra. Isto garante a multiplicidade de sentidos da palavra e evidencia esta questão da compreensão na ininterrupta cadeia da comunicação verbal, que traz em seus elos – os enunciados – a voz do outro, a voz de outrem como constitutiva da voz de cada locutor. Essa relação contínua leva em conta como se assimilam as palavras alheias, como são criadas constitutivamente as respostas contextuais e como as práticas sociais influenciam nossos modos de interação.
Tanto é verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios (BAKHTIN, 2002, p. 41).
O fato de o enunciado dirigir-se a alguém coloca em evidência a figura do destinatário. O locutor, quando elabora seu enunciado o faz pensando não só na resposta a ser dada mas também naquela que o outro pode elaborar como réplica. A tentativa de presumir a resposta do destinatário bem como sua posição social influi na elaboração do enunciado do locutor, quanto à escolha dos recursos linguísticos e construção composicional dentro de um dado gênero discursivo.
Dessa forma, “[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que precede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém (BAKHTIN, 2002, p. 113).” Apoia-se no outro, serve de ponte entre locutor e interlocutor. Não há uma palavra que seja a primeira ou a última. Concretiza-se como signo ideológico no fluxo da interação verbal, ganha diferentes significados de acordo com o contexto em que está inserida e revela um espaço em que os valores fundamentais de uma dada sociedade se explicitam e se confrontam. A realidade (infraestrutura) determina a ideologia. É o ser se refletindo e se refratando no ideológico (superestrutura) pelos interesses sociais.
Assim, cada signo passa a ser utilizado à luz de Sua história e suas diferentes orientações ideológicas que se intercruzam numa dada situação social. É desse processo que se tem a sua sobrevivência como signo vinculado à ideologia do cotidiano, inserido nas diversas esferas de comunicação.
Provém daí a capacidade da palavra de significar, de constituir-se na enunciação. “A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social.” (BAKHTIN, 2002, p. 36). Nesse sentido, o signo é tido como um fragmento material da realidade que a refrata, como veículo da ideologia e, principalmente, como causa e efeito dos confrontos sociais. A consciência constitui-se de signos que entrelaçam signos sem interrupção, formando uma rede ideológica estabilizada nas formas de compreensão da realidade sócio-histórica.
Ao apresentar o meio social como o eixo organizador da atividade linguística, o autor rejeita a ideia de signo como mero sinal, desvinculado do contexto a que pertence, pois:
O elemento que torna a forma linguística um signo
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