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O BRINQUEDO TORTO

Por:   •  24/12/2018  •  2.601 Palavras (11 Páginas)  •  465 Visualizações

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percebeu. Quando ela começou a ir ao mar todo dia, para tomar banho no frio ou no calor, e transparecer uma ansiedade, isso também ninguém via. Nossa casa ficava num lugar alto, ela precisava andar bastante para chegar na praia, mas isso não a incomodava, mas atravessar a casa, para comer com a gente parecia uma travessia terrível. Chegava tão enfastiada na mesa, que passou a comer na sua varanda, e de lá só saía para ir para o quarto. Eu quis comentar isso com as outras pessoas, com minha irmã mais velha, mas eu tive qualquer sentimento que pode ser traduzido como medo.

Kananda: Medo. Quando meu patinho tentava andar com seus irmãos, ele era bicado, enxotado, como algo que não deveria estar ali. Quando tentava nadar, era tratado pelos outros patos com violência e desprezo. Rafa: Foi com raiva dos outros patos que estraguei o vestido da nova mulher do meu pai. Foi por medo de que me machucassem que entrei dentro de mim, e não deixei escapar nem minhas impressões, nem minhas opiniões, nem meus sentimentos. Sorria, e respondia a todos.

Iuri: Às vezes os adultos dizem coisas, fazem brincadeiras, não respondem seriamente, não consideram profundos e verdadeiros os sentimentos das crianças. E não sabem o quanto machucam, ou quebram. (QUEBRA A XÍCARA)

Carol: Foi quando eu comecei a chorar. Quando uma palavra mal dada sobre como eu deveria ser, já que não era mais criança, ou algo assim. Primeiro foram pedidos de desculpas, depois um mau humor generalizado, e depois um tapa. Um tapa que calou meu choro, e me fez descobrir que meu lugar dentro daquela casa, dentro do coração de meu pai, estava sendo empurrado de fora para dentro, e eu não tinha idade para perceber que eu deveria fazer alguma coisa para perceberem que eu ainda existia.

Iuri: Eu não sei se meu pato gostava de flores. Mas ele sempre se escondia em um lugar que tinha muitas. Eu encontrei com ele lá várias vezes, porque várias vezes eu levava flores para casa para decorar e para lembrar a todos que minha mãe estava morta. Ela gostava de flores em casa, e eu fazia questão de lembrar a todos disso. Era uma pequena vingança. Desde então, eu comecei a colecionar pequenas vinganças e canções de ninar. Coisas que faziam lembrar a minha mãe.

Miguel: Quando encontrava meu patinho nas flores, às vezes ele estava tão machucado, com marcas de bicadas dos seus irmãos e seus amigos patos, ele era uma gota de tristeza, tão pequeno e molhado; e eu o pegava no colo, e cantava para ele como eu gostaria que minha mãe cantasse para mim. (CANTA UMA CANÇÃO DE NINAR) Eu cantava para que nós dois parássemos de chorar.

Anna: Eu dizia para ele, que as flores eram o pior lugar do mundo para se escolher, porque elas não tinham nada, apenas a beleza. E isso não ajudava de nada, porque até mesmo alguém como eu era capaz de segura-las pelo pescoço e arrancá-las, e isso sem crueldade aparente, apenas, e justamente, porque eram bonitas. Rafa: Se elas fosses espertas, guardariam a beleza dentro delas, como eu guardava tudo o que não era belo dentro de mim; mas, eu olhava bem fundo do olho dele e dizia assim: se elas desistissem de serem belas, elas não seriam flores.

Miguel: E se ele desistisse de apanhar dos seus iguais, ele não seria um pato. E se eu desistisse de querer o carinho e a atenção que eu merecia, que eram meus por direito, o que é que eu deixaria de ser? Uma criança órfã? Não existe ex-órfão. Eu precisava ser alguma coisa mais, mas o quê?

Eu tinha nessa época um professor, que olhava para minha irmã com olhos tentadores, e uma vez ele falou sobre algo de que se você empurrar uma coisa, essa coisa te empurra de volta, com a mesma força e direção. É claro que eu não entendi. Ele me explicou pedindo que empurrasse uma parede. Eu queria empurrar uma pessoa, aquela mulher, empurrar pela borda do penhasco, mas eu não disse isso a ele. Eu empurrei a tal parede, e ele me perguntou se eu não sentia que a parede me empurrava de volta. Eu dizia que não. Que a parede só fica parada. Eu queria ser como a parede. Imóvel. Insensível a qualquer pressão. Ele insistiu dizendo a parede não estava imóvel, ela estava resistindo a pressão. E quanto mais eu empurrava, mais a resistência dela era a mesma. Então para não ter resistência era apenas parar de empurrar. Eu não conseguia ser uma parede, mas eu conseguia parar de empurrar. Então parei de empurrar. Tudo. Decidi que já que não podia mudar o mundo. Que eu não moveria uma palha para isso então. Um músculo. Me tornei aquilo que chamam de “Pessoa apática”. Não é que fazia questão de expressar de demonstrar que estava triste, ou com raiva, nada disso. Eu apenas não demonstrava nada. Apenas não ligava à mínima.

Iuri: E quando perceberam que eu não fazia isso para me mostrar, para chamar a atenção, começaram a me dar coisas.

Ganhei roupas, malas de viagem, uma viagem. Brinquedos. Os adultos são muito interessantes, não sei como acontece, nem quando, mas em algum momento a pessoa começa a acreditar que a felicidade está em ter coisas. Geovana e Iuri: E aí se tornam adultas, correndo como ratos naquelas rodinhas, comprando coisas e comprando coisas, na tentativa de ser feliz, mas o problema é que existe um número infinito de coisas, então nunca se terá tudo, e se a felicidade depende de ter, então nunca será feliz. É isso o que os adultos são: Não-felizes. Meu pai, médico, conhecido e respeitado, somente preocupado com sua família, tentava em vão buscar e manter nossa felicidade. Sua esposa, parecia incapaz de satisfazer qualquer desejo, incapaz de cumprir qualquer pedido, nem seu próprio filho ela foi capaz de manter.

Gabrielle: Quando pensamos que a felicidade estar em possuir coisas, quando nossa satisfação está em ter, é mais confortável, porque assim a gente não precisa perceber o que somos, é só olhar e ver o que não temos.

Aquela mulher não quis ser mãe. Ela quis ter um filho. E teve. Mas ele viveu pouco tempo. Nem cheguei a segura-lo. Não foi culpa dela, não foi culpa de ninguém. Fazia muito frio. Acontece. Não sei que nome se dá a quem perde um filho. Quem perde o pai, ou a mãe é órfão. Mas existe órfã de filho?

Julia: Isso poderia nos aproximar, de certo modo. Eu poderia ser o pequeno ovo encontrado sem mãe; ela poderia ser minha mamãe pata e me acolher entre suas asas e me encher de amor e carinho reservados, represados por aquele ventre.

Gabrielle: Mas não foi o que aconteceu. Fazia muito frio. E quando faz frios os patos voam para o sul. A família do meu patinho foi para o sul. E nós também fomos. Não foi uma viagem alegre, não tenho certeza de nenhuma lembrança, mas eu me lembro que fomos pelo mar, e isso, o fato de estarmos no mar, fez um mudança abrupta naquela

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