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RESENHA DO LIVRO ÁFRICA INSUBMISSA: CRISTIANISMO, PODER E ESTADO NA SOCIEDADE PÓS-COLONIAL, DE ACHILLE MBEMBE

Por:   •  24/12/2018  •  3.566 Palavras (15 Páginas)  •  674 Visualizações

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por trás dos reais interesses econômicos, era uma negligencia em relação a cultura e religiões dos povos que habitavam as colônias. Os europeus partiam de uma perspectiva de que sua religião era única e absoluta, e que, por conseguinte, todas as demais deveriam ser deixadas de lado, por não constituírem a verdade absoluta, e então toda a humanidade deveria ser devota da fé cristã.

A partir desse pensamento, tentou-se instituir fé cristã na sociedade africana, por meio de lutas entre esta e as religiões pré-existentes, nesse contexto pretendiam ‘’salvar’’ os indígenas que deveriam aceitar o cristianismo e se submeter a ele. Esta posição foi duramente criticada pelos teólogos africanos, que apontaram para o paradoxo da ideia de universalização da humanidade através da fé cristã em contraposição com a lógica de imposição, por meio de lutas de religiões, bem como da ideia de negligenciar todo o saber pré-existente das culturas africanas e a separação entre os povos. A Igreja Cristã tratou de meramente reproduzir discursos europeus em um continente totalmente diferente em todos os aspectos culturais. Se a igreja é realmente universal ela deve tratar de se adaptar a cada espaço, e buscar nele próprio sua identificação. Algo universal não pode ter raízes territoriais, pois um todo onipresente se faz valer em qualquer parte, é divisível em partes únicas que constituem o próprio todo, e não algo inflexível, que não consegue se moldar e então reconfigurar-se de acordo com a história.

A crítica reside em torno desses dois fatos, o fato da religião cristã em muitos momentos da história africana, ter apenas apoiado a estrutura dominante e o poder colonial autoritário, e por ela querer passar por cima das culturas já existente, negligenciando todas, e impondo-se como soberana, além da dificuldade de adaptação local em relação a diferentes culturas e espaços sociais e sua tendência quase que cognitiva de sempre se associar ao pensamento europeu, fazendo com que deixe de ser na verdade, universal, e passe a ser máquina de controle social do Ocidente, instrumento de alienação do povo submetido aos interesses imperialistas.

A missão católica tinha por essência a introdução, junto a outros meios, da cultura ocidental naquele local que exploravam e controlavam. Por isso, ao nomear “A desconstrução do absoluto ocidental” o segundo capítulo, Mbembe mostra como o indígena respondeu a isso de forma indócil.É importante salientar que esse não era um papel exercido por todos. Alguns negros se colocavam favorável ao estabelecimento dessa introdução violenta do externo em detrimento do interno. Isto é, por motivos diversos, como a própria conversão ao que foi oferecido ou vantagens que se adquiria estando ao lado dos colonizadores, membros da comunidade fortaleceram o movimento que tentava aniquilar a cultura ancestral. Por isso, também, o cristianismo e sua busca por protagonismo é visto como elemento fiador desta situação, como enuncia as primeiras linhas do terceiro parágrafo: “Enquanto a situação de supremacia com que são confrontadas as sociedades indígenas persistir, o cristianismo continuará a ser entendido como um fenômeno cultural atualizador da experiência do conflito e da violência simbólica entre os negros” (PAG 47).

A insubordinação é uma característica do indígena, não só em relação ao cristianismo, mas a qualquer situação de confronto, como fica mais claro no desenvolver do livro. Num paralelo, enxergando a realidade do Brasil escravocrata, Chico Buarque escreve os versos “Eu choro em Yorubá, mas rezo por Jesus”, numa síntese deste africano que, muito embora traficado para outro continente do globo, ainda negocia verdades, sem se entregar e abandonar as próprias crenças, e mantendo-se assim como forma de sobrevivência. Isto posto, quando se consegue trabalhar tal característica como particular do indígena, não se tem dificuldades para acompanhar o raciocínio do autor quando ele, ao tratar da formação dos Estados nas sociedades pós-coloniais, traz a retomada dos valores ancestrais, adequados a cada momento, na forma como se desenvolvem as sociedades indígenas e a perda de legitimidade, por diversos motivos, do Estado para o indivíduo local.

Façamos uma breve reflexão sobre a adequação a diferentes tempos de tradições que ultrapassam qualquer barreira cronológica. Fiel aos fatos, a própria tomada da palavra tradição deve ser evitada, já que torna crenças e conceitos imutáveis, o que por si só constituiria um paradoxo. É por isso, pois, que o autor utiliza a expressão “referências ancestrais” ao analisar esse aspecto. Essas referências se fazem necessárias de adaptação justamente porque caso contrário não atenderiam à realidade dos fatos, pelo contrário, constituiriam barreiras de entendimento. Na referência 21 do capítulo 3, na página 59, Mbembe faz uma ilustração poética e eficiente deste ponto. Reconta a história relatada por um tocador de tambor senegalês, R. Doudou N’Diaye: “Há tocadores que não sabem o que estão a tocar. Uma vez ouvi um que fazia dançar as pessoas a um ritmo de fazer cair a chuva. Aproximei-me dele e perguntei-lhe: ‘Sabes o que toca?’. Ele respondeu-me: ‘Isto não tem significado’. (...) Hoje em dia, os tocadores podem fazer dançar a um ritmo que se destina a acompanhar um condenado à morte antes da sua execução”.

A importância desta reflexão sobre a adequação de conceitos ancestrais se dá para que se possa responder à questão: num continente marcado pelo violento conflito entre o externo e o interno, como, nas sociedades pós-coloniais, fez-se a retomada desses conceitos, alvos de poderio da Igreja, das demais forças de colonização e, posteriormente, também dos Estados independentes? As condições objetivas que possibilitaram esse resgate se materializam no olhar que etnólogos lançavam sobre o continente, entendendo a África como religiosamente tradicional, presa à dogmas, mantenedora de tradições que venciam qualquer desgaste. Este paradigma se mostra equivocado em todo o pensamento de Mbembe, mas serviu como base na retomada sobre a qual nos atentamos.

Ao analisar essa perspectiva teórica que considera equivocada, o autor amplia sua crítica a esses teóricos, classificando como simplista o resumo que fazem de considerar a memória indigenista do cristianismo como uma visão da derrota. Acredita terem negligenciado, quando o alvo do debate é o indígena convertido, os motivos que propiciaram tal conversão. “Não se desconfiou o suficiente da quota de ilusão que existiu na teatralização daquilo que de fato se aparenta à derrota dos seus deuses e dos seus códigos de referência” (PAG 65), afirma. É nesse ponto que Mbembe também vai reforçar

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