O avesso da memória
Por: Carolina234 • 13/11/2018 • 2.151 Palavras (9 Páginas) • 309 Visualizações
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No entanto, a atuação nesse tipo de comércio varejista era uma das poucas alternativas acessíveis de mercado de trabalho para os contingentes femininos pobres da sociedade colonial e imprescindível para sua sobrevivência, com destaque para a população de negras forras. Sendo assim, tornou-se quase impossível impedir seu funcionamento, provocando o surgimento de inúmeras vendas clandestinas. Além disso, a pobreza e o limitado rendimento trazido pelo comércio submetiam essas mulheres e suas filhas ao exercício da prostituição como forma de complementação da renda e pagamento dos altos impostos cobrados pela Coroa.
O meretrício tornou-se uma atividade quase que intrínseca à realidade da sociedade mineradora e ao contexto escravista, atingindo proporções absurdas. Além das negras forras, era comum os proprietários fazerem uso das suas escravas como prostitutas. Sendo assim, como ressalta acertadamente o autor, a prostituição seria uma das expressões máximas da pobreza e da exploração sexual e econômica a que foram submetidas as mulheres ao longo da história do Brasil, em particular nas Minas Gerais do século XVIII. Sua outra face seriam as constantes violências sexuais cometidas por seus proprietários e o uso de seu corpo para a reprodução da força de trabalho, além dos constantes episódios de abusos de poder exercidos por membros da administração colonial e por autoridades eclesiásticas, protegidos pela impunidade dos cargos, contra mulheres negras e brancas.
O autor evidencia também a presença das chamadas “casas de alcouce” – residências de proprietários de escravos ou das próprias meretrizes, vendas, senzalas, ou qualquer local relativamente afastado dos centros administrativos, que serviam como prostíbulos; e do fenômeno de alcovitice exercido por alcoviteiros e alcoviteiras (mediadores e incentivadores de encontros e relações de prostituição).
Outro traço marcante e peculiar da sociedade mineradora − na qual, diferentemente das sociedades agrícolas, era muito mais difícil submeter os indivíduos às regras de conduta tradicionais − foi a frequente relação de concubinato (relações afetivas sem casamento). Essas relações eram mantidas principalmente entre descendentes de portugueses (tanto casados quanto solteiros) e mulheres mulatas negras e escravas; entre negros e negras forras; e até entre escravas e terceiros (geralmente forros). Isso demonstra uma relativa flexibilidade da escravidão em Minas Gerais, característica intrínseca ao sistema produtivo que ali se desenvolveu.
Explicação para isso eram os obstáculos financeiros e logísticos para a realização de matrimônios em função da dificuldade de se conseguirem certidões de batismo, muitas vezes mantidas em terras portuguesas, e das altas taxas cobradas pela Igreja para a cerimônia. Assim, o casamento foi visto como uma realidade muito distante do ambiente fluido característico daquela sociedade: extrema mobilidade urbana e vida “andaneja” e instável.
Além do mais, a região das Minas Gerais contava com intensa escassez de mulheres brancas. Das que estavam aqui, muitas eram mandadas para os conventos pelos pais ou desejavam voltar para Portugal. Esse problema motivou medidas, por parte do Estado, a fim de povoar o Brasil com um contingente de mulheres brancas destinadas ao matrimônio com os colonos portugueses aqui presentes: envio de órfãs e de mulheres brancas portuguesas condenadas a degredo para o Brasil e colocação de obstáculos para a volta de mulheres brancas para a Metrópole.
O autor ressalta também a semelhança entre as relações de concubinato e a prostituição. Isso se estendia desde o consentimento de proprietários aos relacionamentos mantidos por suas escravas em troca de dinheiro até o sustento de famílias ajuntadas por meio da prostituição e o arranjo de concubinatos pelos pais para as filhas a fim de dissimular o exercício de meretrício e adquirir renda.
O maior temor das autoridades locais e da Metrópole era que a difusão dessas relações inter-raciais de concubinato e de encontros casuais desencadeasse um processo irreversível de miscigenação da população colonial, e que essa camada fosse capaz de se mobilizar de tal forma que pudesse ameaçar a ordem vigente. Isto é, o incentivo ao estabelecimento, pela Igreja e pelo Estado, de relações conjugais estáveis e somente intra-raciais, bem como outros mecanismo de controle social, fazia parte de um projeto disciplinante da complicada sociedade que se formou nas Gerais, a fim de concentrar as energias da população na esfera doméstica e principalmente de minar o potencial de insatisfação dos desclassificados sociais.
No capitulo “O Universo Religioso” o autor irá tratar especificamente da estrutura religiosa da capitania e do seu papel social, que perpassa todas as esferas anteriormente abordadas. Relativamente livres do Tribunal de Inquisição, a população da colônia tinha sua conduta rigidamente controlada pelo bispado por meio das “visitas pastorais” e dos processos das devassas eclesiais (narrativas de acusações) − ricos depoimentos sobre o cotidiano nas capitanias As visitações tinham o objetivo de disciplinar os comportamentos desviantes e punir os crimes de moral, com destaque para o concubinato, principal conteúdo das denúncias, a prostituição e a feitiçaria.
Os transgressores eram, em sua maioria, os contingentes empobrecidos da sociedade, estando sujeitos a multas proporcionais às suas infrações caso descobertos pelos padres visitadores (clérigos encarregados de fazer o “policiamento moral” nas capitanias). Porém, o autor ressalta uma grande frequência dos mesmos crimes e a reincidência destes por pessoas já incriminadas antes, demonstrando, mais uma vez, a distância que existia entre as normas inconsistentes das autoridades coloniais desejavam impor e a realidade daquela sociedade.
Outro traço marcante de Minas Gerais foi a intensa proliferação de irmandades − associações religiosas de ajuda mútua tanto material quanto espiritual, espaços de convívio social e promoção de festividades. Dissimuladas pelo caráter religioso, tinham a finalidade de monopolizar o exercício de manifestação religiosa, reprimindo aquelas expressões com raízes fora do universo católico, além de servirem como instrumento eficiente de moderação das camadas dominadas, tanto que os senhores estimulavam a filiação de escravos às irmandades. Dividas a partir do critério racial – que geralmente se confundia com o socioeconômico – essas irmandades, apesar da prestação de assistência social (“obras de misericórdia”), acabaram por reproduzir e até reforçar as desigualdades étnicas e sociais
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