O TRÁFICO E ESCRAVIDÃO: A CRIAÇÃO DA DEPENDÊNCIA
Por: Kleber.Oliveira • 20/12/2018 • 16.403 Palavras (66 Páginas) • 299 Visualizações
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de uma montagem consciente, ou inconsciente, da sociedade que o produziu e também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver esquecido ou manipulado, como disse Maria Helena Capelato em seu Imprensa e História do Brasil (1988), por isso a utilização da referida documentação ocorrerá de modo cauteloso, considerar-se-á as restrições documentais e, principalmente, não se tomará o documento como um fragmento de verdade, mas como algo dotado de interesses de classe bem delimitados ou diluídos em suas linhas.
O acesso a novas fontes documentais possibilitou novas abordagens aos velhos temas. Na atual situação historiográfica, quase tudo pode ser utilizado como fonte, desde que se tome os cuidados já advertidos anteriormente. Além dos testamentos e inventários pertencentes aos libertos, resolvi - quase de “última hora” - utilizar também testamentos de pessoas livres, membros da elite local ludovicense. Com essa documentação, é possível analisar como os senhores, no leito de morte, procediam em alforriar ou não seus escravos. Pretendo perceber quais padrões esses senhores seguiam (alforrias incondicionais, alforrias condicionais, alforrias pagas, gratuitas e etc.), a partir daí poderei pensar quais variáveis inferiam no ato de concessão das cartas de alforria.
Portanto, de modo geral, o trabalho busca pensar a alforria sob duas principais perspectivas. Primeiro a perspectiva da mobilidade social e/ou econômica, na qual alforriados que conseguiram legar seus bens e mesmo possuir escravos são o foco. E por ultimo, a perspectiva das variáveis que interferiam no ato de alforriar, essa parte diz respeito à capacidade do escravo em acumular pecúlio e também às suas relações com seus senhores, pessoas livres e com a comunidade escrava. Enfim, os processos de obtenção e consumação ou não da liberdade por escravos são os objetivos deste trabalho. Buscarei demonstrar e existência ou não de um abismo entre cativeiro e liberdade. Adianto que a maioria dos casos aqui abordados são exceções, sujeitos que conseguiram transpor as barreiras do cativeiro de maneira mais incisiva, e desenvolveram um modo de vida distante da realidade anterior de cativeiro, Infelizmente a grande maioria dos escravos não conseguiu tal feito.
Havia finalmente o incentivo supremo da liberdade por meio da alforria. Como veremos, isso não era exatamente uma “miragem”, pois as manumissões no Brasil eram comuns e podiam der obtidas não só com bom comportamento, mas também por compra; a alforria estava pois relacionada à capacidade do escravo de acumular capital. Um cativo mulato ou crioulo com ocupação especializada ou experiência em supervisão no engenho não só podia ter esperanças de finalmente um dia tornar-se livre, mas também podia ter relativa certeza de conseguir emprego após liberto. [...] Os senhores de engenho descobriram que a melhor maneira de obter a desejada quantidade e qualidade do trabalho era com um misto de punições e recompensas: os escravos perceberam que em tal sistema havia oportunidades para melhorarem sua vida.
Estruturalmente o trabalho encontra-se dividido em três capítulos. No primeiro, analiso a primeira metade do século XIX, a dependência da sociedade brasileira em relação à mão-de-obra escrava, as pressões inglesas para o fim do tráfico e a manutenção deste.
No segundo, adentrarei a realidade ludovicense, buscando perceber como a sociedade livre se relacionava com a escravidão. Iniciarei a análise sobre a vida dos libertos e suas perspectivas de futuro, assim como as possibilidades de obtenção da liberdade. Será neste capitulo que utilizarei os testamentos dos membros da elite local afim de perceber os padrões de manumissão mais comuns.
Por fim, me voltarei para a parte que julgo mais intrigante. Neste último capítulo, utilizarei os testamentos e inventários pertencentes aos libertos para analisar suas relações de mobilidade social e/ou econômica, essas relações nos darão base para pensar como estes sujeitos se relacionavam com o mundo livre e com o mundo escravo. Estas exceções sociais poderão nos mostrar que a marginalização social não impossibilitava a mobilidade de libertos. Em alguns casos, estes conseguiam uma equiparação com o status senhorial, possuindo e negociando escravos, rompendo com o antigo paradigma da inércia social destes sujeitos.
1 TRÁFICO E ESCRAVIDÃO: A CRIAÇÃO DA DEPENDÊNCIA.
A colonização portuguesa na América, em seu principio, foi decepcionante para os ditos colonizadores. As riquezas inimagináveis descritas pelos viajantes se traduziram em uma situação que só traria lucratividade a médio ou longo prazo. A frustração trouxe consigo o ímpeto de buscar novas formas de extrair lucros da jovem colônia lusitana. Mesmo diante dessa situação, Portugal buscou aplicar à sua colônia um modelo de colonização no qual a produção fosse articulada com as necessidades metropolitanas. Dessa forma, buscava-se fortalecer a metrópole a partir da acumulação de capital através da produção no interior da colônia. Diferente de outras nações europeias Portugal desde o inicio buscou extrair o máximo possível de suas colônias, durante o período colonial a grande prioridade era suprir as necessidades portuguesas, buscou-se com sistemas como as Capitanias Hereditárias e os Governos Gerais incentivar a colonização e consequentemente a maior acumulação de bens para a metrópole.
E aqui tocamos no ponto nevrálgico; a colonização, segundo a análise que estamos tentando, organizava-se no sentido de promover a primitiva acumulação capitalista nos quadros da economia europeia ou noutros termos, estimular o progresso burguês nos quadros da sociedade ocidental. É esse sentido profundo que articula todas as peças do sistema: assim, em primeiro lugar o regime do comércio se desenvolve nos quadros do exclusivismo metropolitano; daí, a produção colonial orienta-se para aqueles produtos indispensáveis ou complementares às economias centrais; enfim, a produção se organiza de molde a permitir o funcionamento global do sistema. Em outras palavras: não bastava produzir os produtos com procura crescente nos mercados europeus, era indispensável produzi-los de modo que a sua comercialização promovesse estímulos à originária acumulação burguesa nas economias europeias.
A atividade colonial iniciada em meados do século XVI, mesmo contando com vultuosos investimentos de particulares, foi gerenciada pela monarquia portuguesa. Portugal influenciou na formação de uma classe dominante diretamente vinculada à si, os senhores de engenho foram quase que exclusivamente os donos do poder durante grande parte do período colonial. Essa classe
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