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A MITIGAÇÃO DA CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA PELA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Por:   •  16/4/2018  •  3.421 Palavras (14 Páginas)  •  253 Visualizações

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O efeito estigmatizante da atividade policial, talvez por inaugurar a persecução penal, é mais profunda que o das demais instâncias punitivas, mas também é conspícuo, motivo pelo qual as ações policiais são constantemente postas em dúvida pela opinião pública. Assim, a Polícia, enquanto instância inicial comum do sistema penal, elege seus candidatos criminalizáveis e submetem-nos ao crivo do Poder Judiciário, o qual, por sua vez, pode intervir para contornar a segregação entre criminalizados e politizados, limitando a violência institucional da seletividade.

Algumas garantias processuais clássicas já ofertavam essa intervenção judicial, tal como o Habeas Corpus. Em que pese a forte resistência às chamadas audiências de custódia, implementadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a medida demonstra-se eficaz para atenuação da criminalização secundária. Sem a pretensão de esgotar o instituto, abordando inclusive sua constitucionalidade, busca-se indicar que o contato imediato entre julgador e criminalizado pode mudar o posicionamento não somente sobre sua prisão, mas também a respeito de sua conduta considerada desviante. A audiência de custódia humaniza a decretação da prisão preventiva, oportuniza ao indiciado um mínimo de contraditório e, paralelamente, propicia o juiz atenuar a criminalização secundária.

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2 CONTRIBUIÇÕES DE RAUL ZAFFARONI

Dentre juristas, sociólogos e criminólogos latino-americanos, relativamente poucos foram aqueles que se propuseram a interpretar o crime sob a perspectiva das classes subalternas. Zaffaroni assume uma postura realista sobre o poder de punir e a irracionalidade das instâncias punitivas, realinhando a função do Direito Penal: impor freios a arbitrariedade estatal. Afeito à criminologia crítica, uma das suas principais contribuições nesse sentido é a "culpabilidade por vulnerabilidade" que leva em conta a seletividade do sistema penal.

Zaffaroni (2003) identifica dois tipos de criminalização: primária, consistente na criação de uma lei penal direcionada a determinado grupo de pessoas, e secundária, cujo recrutamento punitivo recai sobre pessoas concretas, normalmente através das agências policiais e judiciárias. A criminalização primária é caracterizada pelo ato legislativo que estabelece um amplo programa punitivo, ao qual se subsome condutas criminosas correspondentes. Essa característica abstrata e impessoal ganha contornos próprios durante a execução do programa punitivo, quando ocorre uma seleção na sociedade para definir os vitimizados, os policializados e os criminalizados.

Uma vez que o programa punitivo é demasiadamente amplo, as instâncias punitivas não são capazes de realiza-lo efetivamente. Essa incapacidade força a seleção de pessoas para cumprimento mínimo do programa. No entanto, a seletividade não é promovida pelas agências policiais e judiciais segundo seus critérios exclusivos, mas da orientação de agentes ideológicos os quais, através das portas de comunicação, influenciam a opinião pública. Com isso, a seletividade acaba por incidir sobre aqueles com menor acesso ao poder político e econômico, distantes dos meios de comunicação: “(...) as agências acabam selecionando aqueles que circulam pelos espaços públicos com o figurino social dos delinquentes, prestando-se à criminalização” (ZAFFARONI, 2001, p. 47).

Para Zaffaroni, a criminalização secundária possui, como características marcantes, a seletividade e a vulnerabilidade, já que o exercício do poder punitivo tem propensão a alcançar pessoas previamente escolhidas em face de suas fraquezas sociais. E conclui que:

“[...] o sistema penal escolhe pessoas arbitrariamente e que os requisitos de tipicidade e antijuridicidade (sintetizados na categoria de “injusto penal”) nada mais são que os requisitos mínimos que a agência judicial deve esforçar-se por responder a fim de permitir que o processo de criminalização, em curso, sobre a pessoa arbitrariamente selecionada, possa avançar” (ZAFFARONI, 2001, p. 250).

Por outro lado, a reprovação pela culpabilidade, elemento subjetivo, depende muito mais de fundamentos morais e éticos, aparentemente inexistente no sistema penal. “A seletividade do sistema penal neutraliza a reprovação: ‘Por que a mim? Por que não a outros que fizeram o mesmo?’. São perguntas que a reprovação normativa não pode responder" (ZAFFARONI, 2001, p. 259).

O sistema penal opera, assim, estruturalmente em forma de filtro, diante das três hipóteses de criminalização, enumeradas pelo referido autor: criminalização conforme o estereótipo, referente às pessoas que se enquadram na imagem de delinquente no imaginário social; criminalização por comportamento grotesco ou trágico, quando a ação delituosa é brutal e causa muita repulsa; criminalização por falta de cobertura, quando uma pessoa, a princípio não atingida pelo poder punitivo, perde uma disputa política ou econômica contra outra, mais poderosa. As duas últimas possibilidades são mais raras no sistema penal, pois estão relacionadas às pessoas fora do estereótipo criminalizado, mas eventualmente se tornaram vulneráveis ao poder punitivo. O autor conclui que esses casos servem para “encobrir ideologicamente a seletividade do sistema” (2003, p. 50).

Nessa perspectiva, quanto mais próxima do estereótipo criminalizado, maior o estado de vulnerabilidade do indivíduo ao poder punitivo. Dessa forma, as consequências da desigualdade social não são causas da criminalidade, mas sim condições pessoais de ingresso no programa punitivo. Excepcionalmente, para alimentar a ilusão de que o sistema pune de forma igualitária, são recrutadas pessoa que não cumprem os requisitos - estereótipo, mas se candidataram por “comportamento grotesco” ou “falta de cobertura”.

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3 A FILTRAGEM NA FASE POLICIAL

Tradicionalmente, o Poder Judiciário e o Ministério Público acreditam ter mais poder que a Polícia, o que pode corresponder do ponto de vista político, mas a filtragem dos indivíduos no sistema penal ocorre na fase policial, que já providencia o etiquetamento do criminalizado. Na verdade, no Brasil, com a centralização do processo penal ainda no Império, a Polícia passa a ser uma das agências mais importante para sustentação dos projetos políticos, incorporando as funções de controle social dos grupos oprimidos.

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