Montessori
Por: Sara • 25/2/2018 • 9.241 Palavras (37 Páginas) • 286 Visualizações
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A palavra “deficiência” é efeito de discursos/práticas produtores de certo sentido deficitário, bem como uma ferramenta que ratifica essa construção, como nos traz Santos (2012) em seu artigo que discute “os sentidos dicionarizados de deficiência”. Segundo a autora “podemos dizer que o funcionamento da palavra deficiência é marcado pelo memorável da enunciação, da etimologia quando mobiliza as acepções insuficiência, falta, fraqueza, limitação, incapacidade” (SANTOS, 2012). Assim, surge uma questão quanto aos efeitos político-subjetivos e aos discursos/práticas criados sobre o dito “portador de deficiência”, já que essas maneiras de qualificação também falam de modos de atuação no trato das questões ligadas à deficiência, estando presente nos programas de governo, nas leis, nas intervenções, bem como nas relações mais informais. Pois acredito, servida de Foucault (1979), que discurso e prática são indissociáveis. Ou seja, que os discursos são produtores de realidades.
Tais questionamentos advêm de uma experiência de estágio, na Unidade de Educação Infantil da UFF, com uma criança “portadora de múltiplas deficiências”. A experiência, de um ano e meio é perpassada por momentos chaves que guiarão a construção dessa escrita. Um primeiro diz respeito a minha adesão a uma demanda hegemônica, que ilustro pela seguinte situação: “entregar uma pasta cheia de tarefinhas para a mãe”. Outro apresenta um acontecimento produtor de desvios no processo de adesão ao qual estava inserida: “a mordida marcou para mim um limite e, nesse momento, vi sua potência”. Por fim, a possibilidade de pensar meus modos de fazer, produzindo uma postura diferente daquela com a qual iniciei o percurso: “proponho uma postura ética na possibilidade, que vai ‘pintar’ uma paisagem com o pincel e tinta que tem”.
Para discutir essa trajetória, tomarei a deficiência não como algo natural, mas como acontecimento, conceito proposto por Foucault (2008). Segundo o autor, um acontecimento pode ser entendido como “uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada.” (Foucault, 2008, p 28). Ou seja, um acontecimento é aquilo que gera rupturas nas formas concretizadas e abre um campo para a produção de novas relações. Isso implica assegurar à deficiência sua historicização, admitindo que, no mesmo momento em que surgiram certos cuidados com ela, começaram a engendrarem-se não só os sentidos que hoje lhe atribuímos, como a preocupação com seus destinos (LOBO, 2008). Afirmar o caráter construtivo da deficiência significa “ questionar-se acerca das condições que nos permitam, de acordo com regras de estabelecimentos de verdades e erro” (LOBO 2008, p.21) reconhecer o sujeito portador de deficiência como aquele possuidor de impedimentos que obstruem uma “participação plena” na sociedade, tal como traz a convenção. Mas, o que seriam esses impedimentos e de que participação plena está se falando? Qual o modo de se conceber a vida está em jogo quando se afirma uma forma padrão saudável de existir? O que se pretende com essa modelização da vida e em que contexto ela se tornou uma aposta social?
A partir das inquietações apresentadas, pretendo, por meio da análise de textos, do relato da experiência na creche universitária e estudo de teses, problematizar algumas questões que circunscrevem o campo da deficiência. Para isso, traçarei um percurso que buscará cartografar[1] os discursos/práticas criadores e ratificadores de certa normalização da vida e pensar as contribuições da obra “ O normal e o patológico” de Georges Canguilhem a essa problemática.
sombra do que não pode ou do que ainda não está conforme
“Cheguei na creche e ele estava ‘apagado’ na cadeira. Depois acordou e espalhamos tatames, chocalhos, macarrão e ele começou a interagir muito. Era uma criança com baixa visão, que não andava, não falava, e que tinha espamos musculares constantes, acompanhados de crises de ausência.”
Esse é um relato da primeira vez em que vi a criança que ficaria sob minha responsabilidade. Olhei para tudo o que ela não fazia, as características que dificultavam o curso das coisas, e daí surgiram alguns questionamentos: O que eu faço? Qual será o meu trabalho? Como vou incluí-la nas atividades do grupo de crianças com tanta dificuldade apresentada? Fui, então, desenvolvendo com ela e com o grupo alguns “projetos de sensações” para explorar os diversos modos de perceber o mundo, provocar/disponibilizar conversas com as demais crianças para pensarmos os estranhamentos que o encontro com o diferente causava, fazendo contações de história mais sonoras, etc. Mas, junto a essas ideias mais amplas, uma sombra me acompanhava. A esta denomino “sombra do que não pode”, ou “daquilo que ainda não fazia conforme”, como por exemplo pegar um lápis de cor e pintar o papel ao invés de colocar na boca, fazer bonecos de massinha, colar os papeis. O fim do semestre se aproximava e eu entregaria uma pasta quase vazia para a família. Isso foi gerando um desconforto em mim e, além de trabalhar as múltiplas formas de expressão (tato, sons, gestos) da criança, comecei a tentar corrigir algumas nuanças apresentadas: “Fulana, o lápis é no papel e não na boca!” Entretanto, de que demanda me falavam essas sombras? De que tratava essa vontade de incluir deixando igual?
Estas indagações me fizeram querer investigar os diversos vetores que se entrecruzaram no correr da história e que tiveram como efeito a formulação do deficiente, tal qual apresentada na Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência. É um pouco desse percurso que apresentarei neste primeiro ponto, uma vez que pretendo pensar, com ele, o processo de constituição dos sentidos negativos, de falta e déficit dos discursos em torno dos ditos “portadores de deficiência”, os quais aparentemente se dão em um contexto não simplesmente “da diferença, mas da desigualdade social. Ou melhor: da diferença sempre reduzida à desigualdade e, quando manipulada pelos ideais de igualdade, laminada pela normalização.” (LOBO, 2008).
Para apreender melhor essas construções, faz-se importante pensar a passagem da Idade Medieval à Clássica. Solicito, então, algumas observações trazidas por José Carlos Rodrigues em seu livro O Corpo na História (1999). Segundo o autor, essa passagem se dá do amalgamento para a fragmentação. No período medieval, quase tudo era de domínio público, seriedade e riso se apresentavam
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