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PRESENÇA E AUSÊNCIA DO TRANSCENDENTE EM KADOSH, DE HILDA HILST

Por:   •  17/10/2018  •  4.664 Palavras (19 Páginas)  •  358 Visualizações

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Tais mudanças apresentam reflexos diretos sobre o indivíduo, o qual começa a experimentar a angústia existencial de forma mais acentuada, chegando então à crise de identidade. Segundo Hall (2005, p.12), o indivíduo reflete no seu modo de ser e agir as mudanças que deslocaram as estruturas da sociedade, abalando o que se tinha até então por referência. Dentro dessa perspectiva, um aspecto interessante a observar é a questão da presença da religiosidade na vida dos indivíduos e das comunidades. A presença de Deus, que era vista em outros tempos como único centro para sustentar e entender o ser e suas aflições, começa a enfraquecer em sua unidade diante desse acelerado processo de mudanças. Ocorre uma perda do “sentido de si”, ou seja, o que até o momento era visto como parâmetro para julgamento de certo e errado passa a ser questionado e substituído por novas consciências: “[...] o sujeito, visto como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado, composto de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas” (HALL, 2005, p.12).

No universo literário essas transformações são de certo modo intensificadas e levadas às últimas conseqüências por alguns escritores, como é o caso de Hilda Hilst. A idéia de provisoriedade e da incerteza toma o lugar das referências seguras e sólidas, tornando a instabilidade e a efemeridade marcas do nosso tempo. Do concreto, o ser é lançado diretamente para situações imprevisíveis, trágicas e geralmente inexplicáveis. Isso ocorre pela idéia, que habita o ser humano, de que este é capaz de desvendar e explicar, de forma racional, tudo aquilo que o rodeia. Assim, o homem faz uma tentativa de reavaliação de suas atitudes e crenças no desejo de evoluir sempre. Porém, nessa perspectiva de possibilidades, acaba perdendo algumas referências que até então o sustentavam, tornando-se cada vez mais descentrado.

Em seus textos, Hilda abordará essa vulnerabilidade do ser humano, vendo-o como não preparado para enfrentar os choques e desafios de um novo momento. Tal concepção auxilia a compreensão dos questionamentos que se fazem, por exemplo, em textos como Kadosh, no qual o personagem, múltiplo, se debate numa indagação acerca da presença, da importância e do valor de Deus para o homem. É um desafio que se constitui por meio da utilização de imagens lingüísticas, sendo derivados daí vários nomes que caracterizarão a presença divina não materializada. Em alguns momentos, o próprio Deus é considerado, diante do discurso angustiante do personagem, como sendo um ser comum e sujeito a fraquezas, à maneira do ser humano. Ao mesmo tempo, este último o invoca e torna possível sua existência por meio da adoração.

É a partir dessas situações inexplicáveis, às quais o ser humano é submetido, que se articula todo o discurso de Kadosh. Em meio a perguntas de alta ressonância filosófica, religiosa e mística a obra avança no sentido de alcançar uma transcendência para superar o vazio que permeia a condição humana. Para isso, há a utilização de uma linguagem culta repleta de metáforas e lirismo que dura até o momento em que faltam respostas a essas inúmeras perguntas. Desse ponto em diante, o que toma lugar no discurso é a fúria, numa corrente incontrolável de blasfêmias, quando o ser se percebe incompreensível. Intercalam-se assim vários níveis de linguagem dentro do discurso, o qual pode ser visto como uma teologia negativa, ao realizar a esperança eterna de compreensão de Deus como estigma de dor e vazio, sem mesmo deixar de sugerir que maldade e vileza são também atributos divinos:

Te procuro possuído de fúria e de candura, vê se meu nome não está aíi no teu muro de pedra, na tua caderneta de cristal ou de couro Old England, procura vamos lá, Kadosh deve perder-se, deve torcer a alma, espancá-la e depois estendê-la nos varais, que tudo fique sem resposta para o corpo vazio de Kadosh e que ele seja sempre um nada lutando para manter-se em pé. (HILST, 2002, p.106)

Diante desse ambiente inseguro, em que o ser se vê destituído de referências sólidas, há uma notável tentativa, por parte desse indivíduo fragmentado, de entender e recuperar seu centro sagrado. Isso se dá pela necessidade de encontrar, senão a solução para as interrogações de cunho existencial que acompanham a condição humana ao longo de sua história, ao menos respostas provisórias que superem o vazio, manifestado nesse momento de uma forma muito intensa. A tentativa de superação dessa condição é demonstrada pela veemente necessidade de materialização da presença ausente, mas indispensável de Deus, buscada pelo ser humano a partir de coisas terrestres.

A questão da presença e ausência de Deus na obra de Hilda será vista como eixo central que “se estabelece como uma força que justifica e impõe a necessidade de escrever” (SUTTANA, 2007, p.32). Como toda possibilidade de existir vista no texto se orientará na direção dessa busca, poderá ser chamado “de presença aquilo em direção ao qual o ser se orienta. E de ausência aquilo que falta, mas que se vive no próprio movimento de orientar-se metafisicamente para Ele, como objeto de busca e expectação” (idem, p.33).

Nesse texto intitulado Kadosh Hilda Hilst trabalha com a relação atormentada do ser com o divino. Todas as situações são exploradas a partir de uma causa anterior e mais elevada, a procura de Grande Obscuro, paradoxalmente presente no texto pelo fato de estar ausente na história narrada, levando a crer que “buscar a divindade na ficção de Hilda Hilst, tem o sentido de afirmar a ausência da divindade.” (SUTTANA, 2007, p.32)

Esta reflexão sobre o texto de Hilda Hilst pretende buscar uma maior aproximação à sua escrita tumultuada, que apresenta uma mistura sem precedentes de todos os gêneros, deixando clara a capacidade da escritora de trabalhar com o magnífico e o monstruoso ao mesmo tempo e de manter o fio do discurso como um fascinante caminho de reflexões sobre a existência humana. Esse discurso é sempre permeado pela desconstrução da idéia tradicional de Deus, o qual recebe em seus textos inúmeros nomes, tais como Grande Obscuro, Grande Incorruptível, Sem Nome, Mudo Sempre, Tríplice Acrobata, Máscara do Nojo. Igualmente, constitui-se como uma busca incessante e dolorosa de algo que não possui presença materializada, mas que existe na consciência de todos os seres e que os influencia nas suas atitudes individuais, ora sendo objeto de orientação, ora de ameaça:

Agora que estou sem Deus posso me coçar com mais tranqüilidade. (Hilst, 2002 p.129)

Por que até agora persigo a quem não

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