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Anel de Giges

Por:   •  18/9/2018  •  4.356 Palavras (18 Páginas)  •  606 Visualizações

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Uma história certamente fantástica essa de Gláucon. Mas, como muitas histórias criadas por filósofos, seu objetivo é enriquecer certa linha de argumentação. O ponto a que Gláucon pretende chegar é o seguinte:

Se, portanto, houvesse dois anéis como esse e um deles o homem justo colocasse em seu dedo, e o outro o injusto, não haveria ninguém tão pertinaz que perseverasse na justiça e fosse tão resistente que se mantivesse longe dos bens alheios e neles não tocasse, estando livre para, sem nada temer, tomar o que quisesse no mercado, entrar nas casas e aí conviver com quem quisesse, matar e livrar dos grilhões quem quisesse e fazer tudo o mais, já que, entre os homens, seria igual a um deus. Agindo assim, nada faria de diferente do outro, mas, ao contrário, ambos percorreriam o mesmo caminho. Ora, diria alguém, isso é indício de que ninguém é justo de bom grado, mas sob coerção, já que para ele pessoalmente isso não é um bem, já que cada um, quando crê que será capaz de cometer injustiça, comete.

Qual é o argumento proposto no caso no Anel de Giges? Para compreendermos sua estrutura, vamos adaptá-lo ao um conhecido modelo empregado em teorias da decisão racional. O que é melhor, ter a vida de uma pessoa justa ou a vida de uma pessoa injusta? Em outras palavras, o que deveríamos preferir: a vida de uma pessoa “boa”, “de bem”, ou a vida de um malandro? Ou ainda, o que é mais importante: esforçar-se para ser uma pessoa realmente boa, ou não se importar com isso e buscar tirar o máximo proveito possível, seja do bem, seja do mal? Imaginemos, como nos propõe Gláucon, duas pessoas: uma de índole justa, outra de índole injusta. A primeira pratica o que é bom e correto simplesmente porque é de seu feitio; aliás, ela pratica o bem e o que é certo da melhor forma que se poderia imaginar. Podemos chamá-la de uma pessoa virtuosa; ela é diligente e prudente em praticar o que é tido como bom e correto, e ela o faz de coração (pois é assim que ela é). A outra não se importa com o fato de estar fazendo o que é bom ou correto; o que ela busca é sua própria satisfação. Para ela, somente seu interesse importa; os outros apenas importam a ela na medida em que são meios para a satisfação de seus interesses pessoais. Isso a torna apta a fazer o que é bom e certo, mas também a não fazer o bem e a praticar injustiças; se o mal e a injustiça lhe forem mais vantajosas, a curto, médio ou longo prazos, não há motivos, segundo ela, para não praticá-las. Imaginemos, agora, dois desfechos possíveis: pode ser que aquele que é justo acabe, ao final, parecendo justo aos olhos de todos; mas pode ser também que ele acabe no fim sendo visto como injusto (talvez por engano; talvez por maledicência). O fato é que as duas situações são possíveis (e não importa, por ora, saber qual das duas é a mais provável).

O mesmo pode ser pensado com respeito ao sujeito injusto. Imaginemos que ao cabo de sua vida ele seja visto por muitos, ou mesmo por todos, como uma pessoa justa (afinal, sendo também um sujeito inteligente, ou se preferirmos, esperto, ele fará o possível e o “impossível” para que isso venha a ocorrer – o que, aliás, faz parte de sua arte). Novamente, aqui não importa se, dado isso, é mais ou menos provável que o injusto seja visto ou não como justo. Importa apenas que isso é possível. O fato é que o juízo comum considera a justiça meritória. A todo indivíduo reconhecido como justo atribui-se prestígio. Sendo o prestígio um valor, vamos lhe atribuir um valor “10”. Como as pessoas não são neutras com respeito à injustiça, atribuamos a ela o valor oposto, no caso, “-10”.

Vamos assumir agora, junto com Gláucon, que “cometer injustiças é um bem e sofrê-la, um mal”. Ou seja, pessoas só praticam injustiça porque de algum modo isso lhe traz vantagens. Por outro lado, assumamos que a justiça, para o agente, é apenas um ônus. O que é perfeitamente condizente como o que a maioria dos filósofos defende. Buscamos, afinal, fazer o bem para nós mesmos; mas, quando fazemos o bem aos outros, não é a nós que ajudamos e sim a eles.

Ora, nesse caso, a bondade e a justiça não poderiam ser virtudes que expressassem algum tipo de sabedoria ou conhecimento, caso seu objetivo fosse apenas trazer benefícios ao agente; ao contrário, virtudes exigem esforço, e seu desenvolvimento acarreta sempre algum ônus. O mesmo, entretanto, não se pode dizer da prática voluntária de injustiças. Sua “arte” (pois a prática voluntária de ações contrárias à lei também exige know how) dirige-se ao proveito próprio, já que a finalidade é justamente trazer vantagens ao agente. O injusto somente não alcança este êxito caso seja “pego”. Aliás, é por essa mesma razão que a arte de enganar ocupa um papel central na “expertise” de todo malandro.

Imaginemos agora um mundo sem qualquer sistema de justiça (isto é, sem leis, sem polícia, sem qualquer sistema de retribuição ou punição a infrações). Partindo-se da noção de que todo agente move-se por interesses profundamente individuais, num mundo como o nosso, a injustiça seria largamente benéfica aos agentes. Por outro lado, se o agente for pego cometendo o mal ou que é errado, esse benefício acaba simplesmente subtraído. Parecer injusto tem, com efeito, uma carga negativa. Atribuamos, assim, “dez pontos” em nossa matriz quando os outros nos julgam pessoas de bem; atribuamos também “dez pontos” para o benefício obtido com a prática do mal ou do que é injusto. A justiça em si, isto é, independentemente do juízo alheio, não proporciona, no entanto, nada de bom ao agente (já que assumimos antes que todo mérito pessoal deriva-se do juízo alheio, algo equivalente à honra ou ao aplauso público). Vejamos como fica o quadro:

Parece Justo

Parece Injusto

Justo

10

-10

Injusto

20

0

Primeiro, vamos entender o quadro. Na primeira linha, alinhamos aquilo que “parece ser”; na primeira coluna, aquilo que é “de fato”. O filósofo estoico Epíteto identificou quatro possibilidades de apresentação das “aparências”, e as distribuiu do seguinte modo:

As aparências, para nós, são de quatro tipos. As coisas ou são o que parecem ser; ou não são, e nem parecem ser; ou são, e não parecem ser; ou não são, mesmo assim parecem ser. Formar um juízo correto sobre todos esses casos é a tarefa

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