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O qué etnocentrismo

Por:   •  1/11/2018  •  17.423 Palavras (70 Páginas)  •  351 Visualizações

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O selvagem e o que vem da floresta, da selva que lembra, de alguma maneira, a vida animal. O “outro” e o “aquem” ou o “alem”, nunca o “igual” ao “eu”.

O que importa realmente, neste conjunto de ideias, e o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma atitude informa os diferentes grupos. O etnocentrismo nao e propriedade, como ja disse, de uma unica sociedade, apesar de que, na nossa, revestiu-se de um carater ativista e colonizador com os mais diferentes empreendimentos de conquista e destruiqao de outros povos.

A atitude etnocentrica tem, por outro lado, um correlato bastante importante e que talvez seja elucidativo para a compreensao destas maneiras exacerbadas e ate crueis de encarar o “outro”. Existe realmente, paralelo a violencia que a atitude etnocentrica encerra, o pressuposto de que o “outro” deva ser alguma coisa que nao desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo.

Creio que e necessario examinar isto melhor e vou faze-lo atraves de uma pequena estoria que me parece exemplar.

Ao receber a missao de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelizaqao e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si proprio apenas um modernissimo relogio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e ate dizer a hora sempre absolutamente certa, infalivel. Ao chegar, venceu as burocracias inevitaveis e, apos alguns meses, encontrava-se em meio as sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinaqao. Tempos depois, fez-se amigo de um Indio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregaqao e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente, do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava frequentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relogio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem Indio.

A surpresa maior estava, porem, por vir. Dias depois, o Indio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma arvore altissima nas cercanias da aldeia, o Indio fez o pastor divisar, nao sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relogio. O Indio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguivel em meio as penas e contas e, ainda por cima, pendurado a varios metros de altura, o relogio, agora minimo e sem nenhuma funqao, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o relogio.

Passados mais alguns meses o pastor tambem se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatorios e, naquela manha, dar uma ultima revisada na comunicaqao que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelizaqao. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relogio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiraqao de ultima hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritorio. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e ate uma flauta formavam uma bela decora9ao. Rustica e sobria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembran9as. Com o pe na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engra9ado o que aquele Indio foi fazer com o meu relogio.

Esta estoria, nao necessariamente verdadeira, porem, de toda evidencia, bastante plausivel, demonstra alguns dos importantes sentidos da questao do etnocentrismo.

Em primeiro lugar, nao e necessario ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia Social (ou ainda pastor) para perceber que, neste choque de culturas, os personagens de cada uma delas fizeram, obviamente, a mesma coisa. Privilegiaram ambos as fun9oes esteticas, ornamentais, decorativas de objetos que, na cultura do “outro”, desempenhavam fun9oes que seriam principalmente tecnicas. Para o pastor, o uso inusitado do seu relogio causou tanto espanto quanto o que causaria ao jovem Indio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada um “traduziu” nos termos de sua propria cultura o significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do “outro”. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”.

Em segundo lugar, esta estoria representa o que se poderia chamar, se isso fosse possivel, de um etnocentrismo “cordial”, ja que ambos - o Indio e o pastor - tiveram atitudes concretas sem maiores consequencias. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreensao do “outro” que se reveste de uma forma bastante violenta. Como ja vimos, pode coloca-lo como “primitivo”, como “algo a ser destruido”, como “atraso ao desenvolvimento”, (formula, alias, muito comum e de uso geral no etnocidio, na matan9a dos indios).

Assim, por exemplo, um famoso cientista do inicio do seculo, Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, justificava o exterminio dos indios Caingangue por serem um empecilho ao desenvolvimento e a coloniza9ao das regioes do sertao que eles habitavam. Tanto no presente como no passado, tanto aqui como em varios outros lugares, a logica do exterminio regulou, infinitas vezes, as rela9oes entre a chamada “civiliza9ao ocidental” e as sociedades tribais. Isso lembra o comentario, tristemente exemplar, de uma crian9a, de um grande centro urbano, que, de tanto ouvir absurdos sobre o indio, seja em casa, seja nos livros didaticos, seja na industria cultural, acabou por defini-los dizendo: “o indio e o maior amigo do homem”.

Em terceiro lugar, a estoria ainda ensina que o “outro” e sua cultura, da qual falamos na nossa sociedade, sao apenas uma representa9ao, uma imagem distorcida que e manipulada como bem entendemos. Ao “outro” negamos aquele minimo de autonomia necessaria para falar de si mesmo. Tudo se passa como se fossemos autores de filmes e livros de fic9ao cientifica onde podemos falar e pensar o quanto e cruel, grotesca e monstruosa uma civiliza9ao de marcianos que capturou nosso foguete. Tambem, porque somos os autores destes filmes e livros, nada nos impede de criarmos um marciano simpatico, inteligente e super-poderoso que com incrivel pericia salva a Terra de uma colisao fatal com um meteoro gigante. Claro, como o marciano nao diz nada, posso pensar dele o que quiser.

Assim, de um ponto de vista do grupo do “eu”, os que estao de fora podem ser brabos e trai9oeiros bem como mansos e bondosos. Alias, “brabos e “mansos” sao dois termos que muitas vezes foram

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